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Sou pároco da Paróquia São Judas Tadeu de Poços de Caldas - Coordeno a Pastoral da Juventude Setor Poços - Diocese de Guaxupé - vivo para servir e sirvo para viver!

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Dei Universa

Na Faculdade Católica de Pouso Alegre, no Final do Curso de Teologia cada aluno deve passar por uma prova que se chama DEI UNIVERSA, que irá abranger a materia dos quatros anos de teologia. Para tanto ao alunos sempre confeccionam juntos algumas teses para estudo. Segue a baixo essas teses que quero partilhar com voces. Para quem gosta de teologia, ai vai:

* Sagrada Escritura;
*Teologia Funamental;
*Teologia Dogmática;
*Cristologia;
*Antropologia Teológica;
*Teologia da Graça;
*Eclesiologia;
*Sacramentos;
*Escatologia;
*teologia Moral;
*Moral Social;
*Bioética.


SAGRADA ESCRITURA

I - ANTIGO TESTAMENTO

1) Importância da literatura profética para teologia do Antigo Testamento

a) A vocação profética e a experiência de Deus
O momento da vocação supõe uma experiência de Deus, uma descoberta que marca a existência do profeta. Embora hoje costumemos sublinhar as raízes teológicas e culturais destes personagens, não podemos esquecer que neles ocorre algo novo. Sua envergadura gigantesca não se explica como simples resultado de alguns elementos prévios. Mas Deus não irrompe na vida deles somente no princípio. Vão descobrindo a Deus por dia, e assim se completa essa imagem inesgotável do Santo ou da Glória de Deus.
Neste aprofundamento da experiência e do conhecimento de Deus desempenham um papel essencial alguns relatos referentes à vida familiar deles, que geralmente catalogamos como “ações simbólicas”. Em grande parte, são isto. Mas muitas vezes o que pretendem não é visualizar ou simbolizar a mensagem do profeta, mas ajudá-lo a descobrir aspectos imprevisíveis de Deus ou de seus planos.
Também em certas visões significam uma experiência nova de Deus. O caso mais típico é o de Amós, que vai sofrendo através delas uma autêntica evolução espiritual. Desde um primeiro momento, em que apenas nota a pequenez do povo e intercede para que Deus não castigue, até o convencimento de que não cabe outra solução diferente da que o Senhor propõe. As visões transformarão também Ezequiel, fazendo-o passar de profeta de condenação e ameaça para profeta de esperança e consolo.
E também a vida diária, como vimos, ajuda a descobrir a Deus. Às vezes descobrimo-lo no rosto do pobre escravizado, e o Senhor adquire toda a força do Deus da Justiça. Outras vezes, nos acontecimentos turbulentos do presente, e Deus se mostra como senhor da história. Efetivamente, cada palavra que o profeta deve transmitir supõe algo novo, não somente para o povo, mas também para ele.

b) A palavra e as ações simbólicas enquanto meios de transmissão da mensagem profética.
A palavra:
Os livros proféticos talvez sejam os mais difíceis de todo Antigo Testamento. o fato não deve estranhar-nos. Para compreender uma mensagem tão encarnada na realidade do seu tempo é preciso conhecer as circunstâncias histórias, culturais, políticas e econômicas em que tais palavras foram pronunciadas. Por outro lado, os profetas usam freqüentemente uma linguagem poética, e todos sabemos que a poesia é mais densa e difícil do que prosa.
Sendo assim, intervenções que no seu tempo devem ter provocado calafrios, e ter soado quase como blasfemas, hoje parecem anódinas a muitos leitores. E palavras de grande profundidade humana e religiosa passam desapercebidas para muitos cristãos. O autor José Luis Sicre diz que seria interessante imaginar como soariam certos textos aos nossos ouvidos, se os antigos profetas ressuscitassem. Com esta intenção ele nos oferece algumas adaptações de textos proféticos. Podem suscitar mal-estar ou escândalo, mas ajudará a compreender a forma que os profetas se expressaram, e os motivos por que foram perseguidos ou passaram por iludidos. Vejamos apenas um exemplo:
“Ide-vos a Betel pecar, em Guilgar pecai firme;
oferecei pela manhã os vossos sacrifícios
e no terceiro dia os vossos dízimos;
oferecei ázimos, pronunciai a ação de graças,
anunciai dons voluntários,
pois é disso eu gostais, israelistas
- oráculo do Senhor” (Am 4, 4-5)

Se lermos este texto em uma eucaristia ou em um ato penitencial, quase ninguém entenderá o seu conteúdo. Vejamos se ressuscitássemos este texto:

“Ide pecar em Aparecida
no Juazeiro pecai firme.
Acudi à missa todos os dias
Oferecei vossas velas e oferendas.
Queimai o incenso da bajulação
Ardam os incensórios,
Anunciai novenas,
Pois é disso que gostais, católicos
- oráculo do Senhor”

Este é um exemplo que está dentro de um contexto da época e depois transportado para hoje, a palavra do profeta vai de acordo com o contexto em que ele vivia. Os exemplos vão se multiplicando facilmente, e isto mostram a força e a fraqueza da palavra profética. Fraca porque ficou aprisionada por uma linguagem, uma história, uma cultura, que não é a nossa. Forte, porque resplandece com todo o vigor quando lhe arrancamos a pátina do tempo. É essencial tentar perceber essa potência e beleza dos textos primitivos. Embora nos livros proféticos haja oráculos de baixo valor literário, formulações pouco precisas e até enfadonhas, são muito abundantes os textos de extraordinária beleza poética. Em uma época como a nossa, em que se critica o consumismo e o imperialismo das grandes multinacionais com multidão de tópicos, inseridos nos discursos mais vulgares, convém reler o magnífico oráculo de Ezequiel contra Tiro, a grande potência comercial da época dele (Ez 27, suprimindo os versículos 12-24). Percebe-se que o profeta não só tem algo importante a dizer, mas também luta e se esforça por formulá-lo bem.
A pregação tem sua riqueza e vitalidade de acordo com seu convivo literário, tais como:
- Gêneros tirados da sabedoria tribal e familiar
- Gêneros tirados do culto
- Gêneros tirados da esfera judicial
- Gêneros tirados da vida diária
Estes gêneros que vimos não típicos dos profetas. Empregam-nos para dar variedade e expressividade à sua linguagem. O específico dos profetas é o oráculo de condenação, dirigido a um individuo ou a uma coletividade.
Ø A condenação individual tem as seguintes características estruturais: Convite a ouvir; acusação; fórmula do mensageiro; e o anúncio do castigo.
Ø A condenação coletiva: Formula do mensageiro; acusação genérica; e anúncio do castigo.
Temos também outros gêneros importante que são os “ais” e a precatória profética, sendo este ultimo composto por 5 elementos: Preliminares do processo (convocação do céu e da terra como testemunha cósmica da aliança); Interrogatório; Requisitória (geralmente em termos históricos, recordando os benefícios e as infidelidades); declaração oficial de culpabilidade do acusado; e Condenação.
E por fim temos os oráculos de salvação que são compostos por: Alocução; A promessa de salvação; a motivação explicando o porque de não ter medo.
Estes gêneros nos da uma boa base para compreendermos a linguagem do profeta, embora muitos autores já debruçaram sobre este assunto e ainda afirmam que precisa estudar muito.

As ações simbólicas:
De acordo com o autor Fohrer as ações simbólicas dos profetas, sendo que estas ações se acham mais em Isaias e Oséias, não tem nada a ver com magias (práticas mágicas) mas tem as seguintes características:
- A origem da ação simbólica é uma ordem de Deus, e não o desejo do profeta nem à vontade de outros homens. É raro faltar a mencionada ordem.
- A interpretação dada profeta mostra que a cão simbólica não se assemelha à ação mágica, a qual opera pela sua própria força. Via de regra, na ação mágica está ausente a interpretação.
- A garantida divina da execução a diferencia ainda mais da magia, onde nunca estamos seguros do resultado. Na ação simbólica, o elemento mágico fica dominado, já que é o poder de Deus que opera na realidade humana.
- Os profetas não desejavam as calamidades simbolizadas, nos magos acontece o contrario.
- A magia procede geralmente com um ritual complicado, não havendo vestígio disto nos profetas.
- A ação mágica pretende modificar o curso do destino. A simbólica, pelo contrario, pretende revelar os planos de Deus; não pretende modificá-los, mas sim que o homem se submeta a eles.
Realmente não tem como ver nos textos proféticos uma forma mágica, como alguns autores percebem, pois há um grande abismo entre o profetismo bíblico e a magia. Mas cada simbolismo que há nas falas dos profetas, tem que levar em conta a realidade que ele ou a comunidade vivia, o contexto histórico e ações que o povo tinham costume de realizar em suas comunidades.

c) A dimensão social da denuncia profética em Israel
Há muitas pesquisas sobre este tema, e têm-se idéias diferentes, condicionadas em parte pela mentalidade da época. Logo baseado no profeta Amós, isto é, tendo ele como referência profética, podemos ter uma visão panorâmica que sirva de paradigma para os demais profetas.
Três linhas fundamentais têm sido propostas para explicar a base da crítica social de Amós: a) um conceito ético de Deus e do homem com valor universal; b) uma experiência pessoal do profeta; c) as tradições típicas de Israel. Em princípio, elas não se excluem mutuamente. Mas alguns comentaristas defendem sua posição de maneira contundente, excluindo outras. E, dentro de cada um destes pontos, especialmente dentro do terceiro, pode-se colocar a ênfase em uma determinada tradição (legal, sapiencial, cultural). Com estes pressupostos, podemos traçar a seguinte panorâmica.
A) Amós baseia-se em um conceito ético de Deus. “Amós transforma a justiça em ponto central de toda a sua idéia de Deus. Também antes se concebia Javé como protetor da moral e do direito (...), mas ninguém, tanto quanto Amós, havia situado até então, com tanta energia, a idéia da justiça e da moralidade no centro de toda a idéia de Deus”. Dentro desta primeira linha, outros pensam que Amós se baseia na “evidência do fato moral”, e na “natureza moral do homem”. Esta é particularmente a opinião Welhasuen, que com isso apresenta os profetas como fundadores do “monoteísmo ético”. E Duhm afirma: “todos estes pecados (refere-se aos denunciados em Am 1-2) são faltas contra o sentimento natural do homem (...). Por isso Amós não invoca uma lei existente (...), senão que pressupõe que as exigências dela apenas expressam o sentimento natural de justiça e equidade inato a todo homem, e que é antinatural desprezar e infringir esta lei. Amós, por conseguinte, intui a natureza moral do homem”.
b) Outros autores sustentam que o profeta se baseia em uma experiência pessoal. “Esta nova idéia do profeta brotou de uma experiência extática. Vivenciou espiritualmente como uma personalidade moral de tremenda seriedade e tremenda exigência, como a encarnação sagrada da idéia moral eterna. Uma experiência religiosa e moral ao mesmo tempo constitui a base da atividade e da pregação de Amós. Um dia encontrou na sua consciência uma vontade superior e idêntica ao Bem, que se revelou antes de tudo como Deus da justiça eterna encontrou em uma experiência religiosa e moral o segredo da sua originalidade, da sua força e, graças a ela, a homenagem da humanidade”.
c) O grupo mais numeroso de comentarista pensa que Amós não descobre coisas novas, não é um revolucionário ético que abre um caminho novo na história da humanidade, nem se baseia em idéias abstratas sobre a moral e o homem. Amós insere-se no contexto do povo de Israel, na sua vida e nas suas tradições. Naturalmente, vivenciou uma experiência pessoal, como deixa claro o próprio livro. Mas isto não exclui outra série de influência, adotadas como ponto de partida para explicar a sua mensagem. “A moralidade dos profetas não é a moralidade da humanidade, mas a de Israel, que não separa costume, direito e moral, como fazem outros povos antigos (...). Os profetas não são fanáticos do monoteísmo, como se diz com freqüência, mas representantes da pureza incontaminada da essência israelita, que une intimamente os antigos costumes patriarcais com o culto de Javé. Assentar o fundamento da moralidade na fé javista, separar o puro do impuro, crentes de pagãos, é algo essencial a esta moralidade, que é religiosa e não geral e racional. Esta moralidade reduz-se a nada, sem a pertença ao povo escolhido, e sem o reconhecimento a adoração de Javé; reduz-se a nada, sem a comunidade, na qual estão unidas as vontades”.
Dentre várias idéias que surgem por autores diferentes, sobre a crítica social dos profetas especialmente de Amós, temos em suma o seguinte: a posição mais adequada parece a que fundamenta a denúncia social de Amós em fatores muito diversos: sentimento natural religioso e humano, experiência pessoal, tradições de Israel (aliança, legislação, sabedoria). Com isto não quero dizer que todos estes elementos se encontrem na mesma intensidade. O típico de Israel e a experiência pessoal desempenham um papel decisivo. Mas não podemos absolutizar nenhum elemento às custas dos outros. A visão do profeta não procede primeiramente do direito nem da sabedoria; junto com eles, expressa um conhecimento geral. “Através de que canais este conhecimento chega a Amós? Não ‘diretamente vindo de cima’, nem de uma relação direta com a ciência em si. Isto não existe. Porém é difícil esclarecer mais a questão; não porque saibamos muito pouco da vida do profeta, mas porque é muito difícil, quase impossível, saber em quê um homem baseia esse conhecimento. De onde sei que não devo matar o próximo? Da educação que recebi? Do que me disseram meus pais ou meus avós? Das historias que me contaram na meninice? Dos livros infantis que li? De refrões que me ensinaram? Da reflexão intelectual e da evidência? Do ensino religioso, do decálogo, da pregação? Do meu conhecimento do Código de Direito Penal? Estes conhecimentos chega ao individual de formas múltiplas, através de muitos canais. Somente em casos excepcionais pode-se afirmar com certeza donde procede o que a gente sabe. Isto vale também para Amós. Devemos aceitar que conhecia o antigo direito israelita; conhecia a ‘ética tribal’ do antigo Israel, como conhecia, com certa segurança, determinados recursos estilísticos da literatura sapiencial. Conhecia as tradições religiosas de Israel, que ministravam a seu modo este conhecimento, e muitas outras coisas. Este conhecimento dentro do qual se movimentava, e a missão especial que lhe foi confiada, o configuram tal como aparece no seu livro, com sua imagem, o seu colorido, a sua linguagem, o seu compromisso pleno”.

2. Pentateuco: história e teologia

a) A hipótese documentária:
Pentateuco é o nome comum para designar o que os judeus chamam de Torá,lei. Abrange os cinco primeiros livros do AT. O nome Pentateuco vem da palavra grega que significa “o livro quíntuplo”, reflete dois de seus aspectos: sua unidade e divisão em 5 partes. Sua unidade interna lhe foi dada por seus autores finais pouco antes de 400 a C. Sua unidade reflete sua função como a lei, a constituição ou a carta fundamental para aquele povo que nessa época se tornou o povo judeu. Há várias razões pela sua divisão em 5 partes: os rolos nos quais os livros antigos eram escritos podiam conter uma quantidade limitada de texto. O Pentateuco não caberia num único rolo; eram precisos 5 rolos. Em segundo, embora também pesasse a conveniência de dividi-lo em 5 rolos manejáveis, cada um dos 5 livros tem uma certa unidade e inteireza por is mesmo. Os nomes desses livros são derivados do hebraico para o grego e se baseiam no conteúdo: Gn (origem); Êx(saída do egito); Lev(praticas rituais e sacrificais); Núm(recenseamento ou numeração do povo no deserto) e o Dt(a segunda lei).
Vários autores contribuíram para desenvolver e aperfeiçoar a hipótese documentaria para a formação do Pentateuco: Richard Simon (sacerdote católico francês+1712) questionou a autoria exclusiva de Moisés para o Pentateuco e afirmou uq este é de fato uma compilação de diversos documentos. Baseou seus argumentos em Gn1-3(criação) e Gn6-8(dilúvio). Junto com outros críticos antigos, ele notou inconsistência que exigiam explicação no caso de se sustentar à teoria tradicional judeu cristã, segundo a qual Moisés é o autor do Pentateuco, por exemplo a descrição por Moisés da sua própria morte e sepultura em Dt34,1-8. as discrepâncias internas nas narrativas da criação e do dilúvio são embaraçosas. A narrativa da criação em Gn 2,4b-25 diz que os seres humanos foram criados primeiro, ao passo que em Gn 1,1-2,4a os coloca no fim. Aí existem duas fontes. No cap. 2 a fonte tem origem no tempo da monarquia. Nessa fonte Deus está mais perto da vida diária do homem. No cap 1 a fonte provém de um período posterior, nos círculos sacerdotais ligado a rituais e leis. Deus descansou no 7º dia.
A intenção dos autores que combinaram essas duas fontes não era tanto contar uma historia para satisfazer a curiosidade sobre a origem do mundo.Antes, para Israel a natureza e a criação serviam como contexto, palco para o drama da criação da comunidade humana. O ponto central desse drama era a origem do povo de Israel. Os caps 1-11 descrevem origem do universo físico e da família. No cap 12 começa a historia de Israel, com a vocação de Abraão.
Um ponto de partida para os primeiros críticos literários foi à variação do nome usado para designar o Deus de Israel: ‘elohin (deus), Iahwh(Senhor). Há outros indícios como os diversos nomes da montanha do êx ( Sinai e Horeb), sogro de Moises(Ragüel e Jetro). Estes indícios levam os estudiosos a definir 4 fontes separadas, que parecem ter tecidas na composição do Pentateuco.Essas 4 fontes podem ser reduzidas a uma combinação de 2 dualidades: uma envolvendo o tipo de material representado nas fontes e a outra envolvendo seu ambiente ou origem geográfica. As 4 fontes contém 2 tipos de material: narrativo e legislativo do norte e do sul. A fonte narrativa que se formou entre grupos da parte setentrional da Palestina, que usa o termo ‘elohim é chamada Eloista ou fonte E (recorda Efraim). A narrativa meridional das origens de Israel está representada na fonte javista usando o nome Iahweh para Deus. A fonte J (recorda Judá).
Essas duas fontes oferecem respostas a perguntas como: Quem somos? De onde viemos? Representam tentativas de dar um senso de identidade e de perspectiva e de comunicar aos recem-chegados valores importantes que essa comunidade cultuava.
O segundo tipo de material responde a perguntas ligadas a legislação, costumes sociais, econômicos, organizacionais e religiosos como: como devemos viver, agir e refletir? O material legislativo tem origem nos círculos do sul, é chamada de fonte sacerdotal P. esta fonte reflete em boa parte a linguagem, a visão e os interesses rituais do sacerdócio levitico, ambientado no sul e especialmente no Templo de Jerusalém.
O povo do norte desenvolveu seu próprio conjunto de costumes e tradições legais conhecidos como fonte Deuteronomista ou D.
Três são as tradições predecessoras: Javísta, Eloísta e Deuteronomista. A obra javísta ficou pronta antes da separação dos dois reinos (Israel – Norte / Judá - Sul). Após a divisão fez-se necessário uma obra que focalizasse o norte, uma vez que a obra javísta enfocava o Sul, com isso cria-se uma obra paralela a Javísta com o nome de Eloísta. Em 722 a.C. o reino do norte foi destruído, assim a tradição do norte, que incluía a versão setentrional dos dez mandamentos, migraram para o sul. Com isso devido os costumes e legislação do norte serem oriundos do Dt os autores chamam esta fonte de Deuteronomista.
A tradição sacerdotal data-se nos últimos anos do exílio babilônico e dos primeiros anos do período pós-exílico (550-450 a.C.), representa as tradições legais preservadas e desenvolvidas no sul de Israel. Embora sua redação e forma escrita definitiva tenham-se efetuado relativamente tarde em comparação com as outras três fontes, acredita-se que nela se preserva um material que data até mesmo dos dias da liga tribal anterior à monarquia. Por volta de 400 a.C. a obra sacerdotal estava concluída, como se deduz de Ne 8,1-8. esse texto nos informa como, aproximadamente naquele ano, o sacerdote/escriba Esdras trouxe de Babilônia “o livro da Lei de Moisés” e, junto com o grupo de levitas, leu e explicou o conteúdo daquela Lei de Moisés para o povo de Jerusalém reunido numa das praças da cidade. Os autores identificam este livro da Lei de Moisés que Esdras leu com o Pentateuco, então concluído. Enfim, pode se dizer de modo geral que a obra sacerdotal é o estrato fonte mais recente do Pentateuco, apesar do seu material ser muito antigo. A diáspora babilônica deve ser considerada como lugar de origem de P. É isto o que se deduz sobretudo do fato de que P era a lei que Esdras levara para Jerusalém, depois de autorização de retorno por parte do rei dos persas (cf. Esd 7, 1ss), e que esta na base de sua reforma. Embora Esdras não seja o autor de P , empenhou-se para que a comunidade de Jerusalém o observasse.
A tradição sacerdotal volta toda a sua atenção para a tradição de Moisés, onde está o peso principal da obra.
A importância de P é que contém um programa de reconstrução da comunidade, determinada por Deus, ou de reforma da comunidade para os tempos que se seguirão ao exílio. Seu objetivo é preservar as tradições mais antigas, mas colocando-as numa forma e numa estrutura que enfatizasse a nova identidade de Israel como uma comunidade religiosa, única entre os outros povos da terra, e claramente segregado deles pela benção especial e pela eleição divina.
Além destas fontes (J,E,D,P), afirma-se que alguns textos presentes no Pentateuco não pertencem a nenhuma destas fontes, soa fragmentos isolados fora destas tradições
Podemos resumir essa visão preliminar da hipotese Documetaria, ou Teoria da Quatro Fontes, em termos de duas dualidades: uma do tipo de material contido e outra da origem geografica: norte E e D ; sul J e P.

b) O êxodo: experiência fundante e paradigma de libertação dos pobres
Boa parte do desenvolvimento e da teologização dos temas do êxodo provém da reflexão e da elaboração dos profetas posteriores para dar esperança e justificativas aqueles povos pobres que estavam sendo escravizados no exílio da Babilônia.
A formação da liga tribal unida de Israel na região montanhosa ao centro de Canaã foi um processo longo e complexo, no qual vários grupos, diferentes e até antagônicos, descobriram a necessidade de se unir num esforço comum: criar e proteger uma frágil zona de vida da ordem política, social, econômica e religiosa. Junto a esses grupos unificou o grupo de Moisés.
O Êxodo é identificado com a fuga dos escravos e derrota do exercito do faraó no mar.
Alguns autores coloca o êxodo do Egito como uma fuga clandestina de um grupo de escravos que levou consigo uma quantidade de bens e coisas preciosas roubadas de seus patrões.
Considerar o êxodo como um fato histórico é problemático. Antes de tudo, as fontes divergem entre si quanto ao que realmente constitui o êxodo: a fuga do Egito ou a libertação no mar.
O êxodo foi à proclamação do amor e do poder salvífico de Deus em favor de seu povo.
Natureza paradigmática: O grupo de escravos que escaparam do Egito sob Moisés e dirigiram para Canaã não era, de fato, aquilo que nós identificamos como Israel. O mais provável é que eles constituíram apenas uma parte dos grupos que eventualmente formaram Israel; sua função foi fundamental para a criação de “Israel” porque contribuíram com 2 elementos unificadores: sua narrativa, a historia de um grupo oprimido e sem poder, que conseguiu escapar de condições opressoras. Contaram sua história repetidamente, celebrando o poder libertador de Deus. Eles atribuíram a fuga a um Deus que eles chamavam de Iahweh, e eles conseguiram construir no deserto uma nova comunidade, unida e determinada por uma aliança desse Deus. o outro elemento que esse grupo ofereceu foi a noção de uma aliança com esse Deus, com Iahweh.

c) A redação final e o seu contexto histórico
A redação final do Pentateuco foi obra dos círculos sacerdotais em torno de 400 a C. A perspectiva final dessa última edição da Torá é a ótica final de sacerdotes e levitas. Foram eles que deram o toque final, a cor dominate aos livros da lei.
Podemos dividir o conteúdo do Pentateuco da seguinte maneira:
Gn 1-11 narrativa sobre as origens: teologia da criação
Gn12-50 os pais e as mães em Israel: vida e andanças de grupos pequenos de pastores seminômades. Ida de Jacó e sua familia para o Egito, casa da servidão (37-50).
Ex 1,1-15-21: A opressão e a libertação dos hebreus: situação de opressão dos hebreus e seu processo libertador movido pela fé em Iahweh. Teologia do êxodo e libertação.
Ex 15,22-18,27: caminhada libertadora do Egito ao Sinai: caminho rumo a terra prometida.
Ex19,1-Nm10,10: Aos pés do Sinai: Aliança entre Iahweh e Israel –doação da lei. Na edição final do Pentateuco no pós-exilio, os sacerdotes mudaram o eixo central do evento do Sinai para destacar a sacralidade do culto, colocando em segundo plano a teologia do Êxodo libertador.
Nm 10,11-21,35: caminhada do Sinai até Moab.
Nm22 Dt 34: Na estepe de Moab: Nesse bloco, se passam os ultimos acontecimentos narrados no Pentateuco. Leis e aliança em Moab.
È importante chamar a atenção para o fato de o Pentateuco terminar sem que seja cumprida a promessa da entrada na terra prometida. O Pentateuco termina sem que a terra tivesse sido libertada. Essa era a situação dos judeus, quando a última edição do Pentateuco foi produzida. Eram outra vez escravos, porém, em sua própria terra(Ne9,36-37). Portanto, fazia-se necessário a uma nova libertação na própria terra. A promessa de terra livre ainda estava por ser cumprida. No seu conjunto, o Pentateuco propõe um projeto futuro de esperanças a seus destinatários ao final da época de dominação persa. É a continuidade da caminhada iniciada por seus antepassados em direção da liberdade na terra prometida.
O Pentateuco nesta época foi acrescentado de várias passagens. Os círculos sacerdotais deixaram fortes marcas de sua visão na história de Israel a partir de seu espaço, o mundo do Templo, do culto, dos sacrifícios, do sagrado e da lei. Fizeram acréscimos no livro como: Gn 1,1-2,4a; monopolizaram o Deus Iahweh, reconstruíram o altar e o Trmplo. São escritos sacerdotais: Ex24,12-40,1ss; todo o livro do Levitico, Nm1,1-10,28, Nm15-19;26-31;33-36.
Referente à conclusão do Pentateuco, seu grosso material é atribuído aos grupos sacerdotais originalmente associados com o Templo de Jerusalém. Oitenta e sete dos seus 187 cap. Vêm da fonte P, em contraste com os 65 cap atribuídos à narrativa combinada JE e os 35 que pertencem ao D. o elemento final na criação do Pentateuco foi o trabalho chamado “sacerdotal” ou fonte P. Com a história sacerdotal, o Pentateuco, tal como o conhecemos hoje, estará praticamente terminado. O início d sua formação se deu com os documentos J e E; mais tarde, entre 722 e 700, houve a fusão desses dois documentos J-E; em seguida apareceu o primeiro Deuteronômio no tempo de Ezequias (716-687). Agora ao núcleo constituído pela fusão J-E, vem juntar-se, perto do fim do exílio, a história sacerdotal.
Em suma, o Pentateuco atual é, pois, uma fusão destas quatro fontes: as narrativas setentrional e meridional das origens de Israel (as fontes Eloísta e Javísta respectivamente) e os materiais legais do norte e do sul (as fontes deuteronomista e sacerdotal). A cada etapa ao longo de sua história de oitocentos anos, as crises ou as mudanças maiores no contexto e na situação de Israel funcionaram como causadoras de reformulação e de passagem para a forma escrita das tradições de Israel. Assim, a transição da liga tribal para a monarquia em torno do ano 1000 a.C. levou à eventual criação das duas epopéias nacionais, J e E, e a destruição do reino do norte, em 722 a.C. constituiu o contexto para o aparecimento do núcleo central do livro do Deuteronômio. Finalmente a destruição de Jerusalém em 587 a.C. e o fim do reino de Judá com o conseqüente exílio de Babilônia foram as crises que deslancharam o trabalho dos círculos sacerdotais, do qual resultou o Pentateuco, por volta de 400 a.

II – NOVO TESTAMENTO

1) As narrativas da infância de Jesus nos Evangelhos de Mateus e Lucas
a) O contexto histórico e social dessas comunidades;
b) As concepções de messianismo em Mateus e Lucas;
c) Os projetos eclesiológicos presentes nessas narrativas.

Mateus
O Evangelho de Mateus surgiu nas comunidades do norte da Galiléia e Síria, que eram constituídas de pessoas pobres e exploradas. Tais comunidades abrigaram inúmeros cristãos que fugiram da perseguição do império e da pressão dos grupos do judaísmo formativo. As comunidades de Mateus experimentaram dificuldades para sobreviver dentro da instabilidade em que se encontrava a Palestina com a destruição do templo e de Jerusalém. O grau destas dificuldades se elevou devido a ação do judaísmo formativo em seu processo de organização. Para enfrentar tantos problemas, as comunidades mateanas criaram instituições, organizaram papéis e funções dos membros e definiram normas de comportamento dentro e fora do grupo. Esses fatos moldaram as comunidades que estão por detrás do Evangelho de Mateus e lhe deram características especiais, a saber:
- Igreja mista – conflitos internos: as comunidades de Mateus eram constituídas de judeus cristãos – observantes da Lei, de judeus cristãos helenistas não apegados à lei e ao Templo e de não judeus. Esse fato causou conflitos internos em torno da questão da observância da Lei. Por isso, o autor do Evangelho fez o papel de mediador, ao combater as posições extremadas para criar um caminho de conciliação.
- Conflitos com o judaísmo formativo: Havia entre as comunidades do judaísmo formativo e as comunidades cristãs um disputa de liderança dos grupos judeus. Por isso os cristãos foram expulsos das sinagogas pelos líderes do judaísmos formativo (cf. Mt 10, 17-23). Com isso o Império pôde fazer a distinção entre judeus e cristãos e perseguir estes últimos. Assim, o Evangelho de Mateus foi escrito num clima de briga entre irmãos.
- Controvérsias a respeito da vinda imediata do Senhor: as comunidades primitivas esperavam que fosse breve a vinda final do Senhor. Como isso não aconteceu, pouco a pouco elas foram tomadas pelo cansaço e abandonaram seu vigor inicial. As comunidades de Mateus também experimentaram esse desânimo.
- Comunidades em tensão: O Evangelho de Mateus, que nasceu em comunidades constituídas em sua maioria por judeus cristãos, retrata a tensão existente no seu meio a respeito da abertura aos gentios. Inicialmente eram comunidades fechadas que compreendiam a missão e a proposta de Jesus como restritas às “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10,6). Mas aos poucos, o conflito com o judaísmo formativo e com o Império Romano, levou essas comunidades a entrar em contato com outras comunidades cristãs e abrir-se a propostas mais abrangentes e solidárias. Desta forma, o Evangelho de Mateus termina com Jesus falando “... vão e façam como que todos os povos se tornem meus discípulos...” (Mt 28,19).
É notório o forte confronte que teve as comunidades mateanas com o judaísmo formativo. Este acreditava que o Messias viria somente quando todos observassem fielmente a Lei. No entanto, as comunidades de Mateus, acreditavam que Jesus de Nazaré era o Messias anunciado pelos profetas. Por isso, as inúmeras citações do Primeiro Testamento, especialmente Isaías. Para fundamentar a fé em Jesus e colocar as comunidades dos seus seguidores em relação ao povo da Primeira Aliança, Mateus apresenta Jesus como o novo Moisés desde o seu nascimento (Mt 2,13-23). Jesus é o único e verdadeiro Mestre da Lei (Mt 23,8).


Lucas
De acordo com o prólogo literário de Lucas (Lc 1,1-4), o evangelho de Lucas e o livro dos Atos dos Apóstolos são destinados aos crentes que já receberam uma formação inicial na fé. A análise interna da obra deixa entrever a existência de “diferentes igrejas”, que se distinguem tanto pelo lugar onde residem como pelos responsáveis por elas (presbíteros, epíscopos). A comunidade é majoritariamente étnico-cristã, já que o ponto de vista predominante é o dos cristãos gregos, o qual, não exclui a existência de uma minoria judeu-cristã.
Possivelmente, se trata de uma comunidade de origem paulina, o que explicaria o papel relevante que Paulo tem na obra, cuja atividade defende, é descrita em paralelismo com Pedro e se apresenta como exemplo a imitar.

Ao se comparar as narrativas da infância de Mateus e de Lucas, é possível notar distintos projetos eclesiológicos:

Mt 1-2: Mateus coloca a esperança do projeto de Deus na comunidade do Israel fiel que tem a missão de anunciar gradativamente o Evangelho para todos. Por isso ele coloca a genealogia de Jesus a partir de Abraão. Jesus, filho de Davi, é o Messias anunciado pelos profetas, pertencente ao povo de Israel e que congregará em torno de si o povo de Israel fiel que acolheu a mensagem de Jesus. Isso se tornará claro com leitura do Evangelho quando Mateus identifica o Reino dos Céus com a sua comunidade.

Lc 1-2: Segundo Lucas, o projeto de Mateus é inviável. Por isso Lucas ressalta o surgimento do Novo Israel desvinculado de nação e raça. Dá ênfase ao messianismo, porém, desvinculado da dinastia davídica. Também testemunha a necessidade de um Reino dos Pobres (em confronto com direto com o Reino davídico e o Império Romano.

PROJETOS ECLESIOLÓGICOS
Mateus
Lucas

Ø Israel Profético
Ø José
Ø Genealogia:
Abraão – Davi – Jesus
Ø Messias: Filho de Davi
Ø Israel fiel anunciará Jesus ao mundo
Ø Novo Israel
Ø Maria
Ø Genealogia
Jesus – Adão – Deus
Ø Messianismo Universalista (cf. 3º Is)
Ø Reinado dos pobres


2) Paulo: judeu, discípulo e apóstolo
a) Paulo, judeu: educação judaica; hebreu, filho de hebreu; zelozo e fariseu; período e escola em Jerusalém; perseguidor de judeu-cristãos dissidentes.
b) Paulo, discípulo: conversão (Epístolas) x chamado (Atos dos Apóstolos); convivência com os apóstolos; Damasco, Jerusalém e Antioquia.
c) Paulo, apóstolo: cronologia lucana e paulina; cristologia, eclesiologia e soteriologia nas Cartas Paulinas.

Em princípio, percebe-se que o ambiente social de Tarso exerceu grande influência no processo formativo de Paulo. Com cerca de cinco anos deve ter aprendido do pai o núcleo essencial da Lei, os salmos festivos para as festas e o louvor diário, rezado pelos judeus a cada manhã. É com essa idade que o jovem Saulo aprendeu a ler e escrever. Já com a idade de seis anos, ele começou a freqüentar a escola primária para pagãos e judeus, nesta época adquiriu um grande respeito pelas instituições públicas e pela religião. Vivendo na diáspora, já na puberdade, estava a par de seus deveres não só em relação à sociedade greco-romana, mas, sobretudo, para com a nação judaica. Neste período, o jovem Saulo-Paulo aprendeu a ler e a memorizar passagens extraídas da Bíblia na versão dos LXX (cf. 2Tm 3,15).
Aos treze anos, com os estudos obrigatórios concluídos, Paulo foi considerado uma pessoa responsável, portanto, apto para iniciar os estudos universitários, assim, para a grande maioria dos estudantes, estudos mais adiantados significavam ouvir as palestras de um orador e aprender com ele a arte da eloqüência.
Quanto a sua família têm-se poucas informações, que são fornecidas pelo próprio Paulo e por Lucas. A fórmula “hebreu filho de hebreus”, pode significar “um membro do povo judeu”, ou de nascença, ou por conversão. Paulo era da raça de Israel, da tribo de Benjamim. A qualificação de “hebreu” em relação à de “israelita” sublinha o aspecto cultural e lingüístico do hebraico de Paulo. No seio de sua família originária o jovem Paulo aprendeu a língua e se nutriu da cultura hebraica. Dessa maneira, quando a província de Gíscala foi devastada pelos romanos, os pais de Paulo mudaram-se para Tarso, cidade da Cilícia, onde o adolescente Paulo herdou a situação pessoal dos pais, assim ele podia fazer valer esses dados do seu registro civil diante de todos aqueles que consideravam importante a identidade judaica.
Dentre os principais partidos dos judeus, os fariseus eram os mais estritos. Paulo era fariseu, filho de fariseus (cf. At 23,6). Podemos estar certos, pois, de que seu preparo religioso tinha raízes na lealdade aos regulamentos da Lei, conforme a interpretavam os rabinos. Aos treze anos, ele devia assumir responsabilidade pessoal pela obediência a essa Lei, na qual os fariseus obedeciam não só à Lei escrita, mas também à sua interpretação e expansão tradicionais, desta maneira, ele era zeloso em defender as tradições dos antepassados. Portanto, a afirmação de Paulo “quanto à lei, sou fariseu”, refere-se ao modo de interpretar e viver a lei bíblica.
Sobre o período e escola em Jerusalém, pode-se dizer que ao completar quinze anos, Paulo deve ter-se mudado para Jerusalém a fim de continuar os estudos e se tornar rabi. Em Jerusalém, ele freqüentou a escola do Templo e foi aluno de Gamaliel. Nela, o jovem Saulo-Paulo sentou-se literalmente aos pés de seu mestre e estudou o Antigo Testamento em hebraico com tradição oral aramaica. Contudo, sobre o processo formativo de Paulo, pode-se afirmar que tenha recebido parte de sua educação em Jerusalém, em torno do ano 15 d.C..
Quanto a perseguidor de judeu-cristãos dissidentes, O que se sabe é que Saulo estava perseguindo os judeu-cristãos de língua e cultura gregas ou os helenistas, pois os judeu-cristãos de língua hebraico-aramaica continuaram tranqüilos juntamente com os apóstolos. Assim, Lucas atribui à perseguição, da qual Saulo se torna promotor, a fuga e a dispersão dos cristãos provindos do helenismo. Contudo, Saulo não podia ordenar que açoitassem os cristãos (cf. 2Cor 11,24). Essa punição só podia ser aplicada por pessoas que possuíam uma qualificação. Na verdade, quando os judeus se reuniam para o estudo da Lei, Saulo provavelmente denunciava os cristãos, considerando-os uma ameaça à sobrevivência do povo judeu. Portanto, a repressão, da qual Paulo é animador e protagonista, se volta contra os judeus helenistas que aderiram ao movimento cristão.
No que se refere ao evento no caminho de Damasco, para Lucas nos Atos dos Apóstolos, Paulo passa de perseguidor da Igreja a apóstolo de Jesus Cristo, enquanto se dirigia à Damasco para perseguir e prender cristãos. Desse modo, para Lucas o que houve foi uma “conversão”, na qual se procura idealizar a figura de Paulo apóstolo e mártir, proclamador do Evangelho aos pagãos. Todavia, em suas cartas autênticas, Paulo nunca fala de “conversão”, quando alude ao evento que deu uma nova face à sua vida. Ele recorre a outro modelo, o do “chamado” de Deus, em outras palavras, Paulo fala daquela experiência como sendo uma revelação do Filho concedida pelo Pai (cf. Gl 1,16). Portanto, a imagem que Paulo oferece de si mesmo em suas cartas é aquela do apóstolo “chamado” por Deus.
No que diz respeito à sua convivência com os apóstolos, primeiramente pode-se dizer que Paulo é “apóstolo”, título este que Paulo coloca com insistência na Carta aos Gálatas. Ele fala dos apóstolos, seus predecessores (cf. Gl 1,17), trata com eles em pé de igualdade, mesmo com Cefas (cf. Gl 1,18) e com Tiago, o irmão do Senhor (cf. Gl 1,19); gloria-se de que as colunas de Jerusalém receberam-no em comunhão, a ele e a Barnabé (cf. Gl 2,9). Desse modo, Paulo é responsável pela missão entre os gentios (cf. Gl 2,6-10); e isso precisamente porque foi escolhido por Deus para ser apóstolo deles. Assim, Paulo faz parte do diretório apostólico, gozando dos mesmos direitos e dos mesmos privilégios que os doze e os irmãos do Senhor. Pois ele viu o Senhor como eles; a visão do Cristo ressuscitado, com o mandato de evangelizar, é constitutiva da função de apóstolo. Portanto, os apóstolos de Jerusalém ficaram convencidos da autenticidade do apostolado de Paulo pelo sucesso de sua evangelização e, sem dúvida, pelas advertências do Espírito Santo que os dirigia eficazmente.
Sobre o fato de Damasco, pode-se afirmar que se trata de uma experiência de caráter religioso que implica, além do protagonista humano, uma referência à realidade de Deus. Portanto, a experiência de Damasco tem um caráter único e fundante em relação à escolha de vida e à função de apóstolo. Após este evento de Damasco Paulo realiza uma atividade autônoma de evangelização nos arredores de Damasco, provavelmente na Arábia (cf. Gl 1,17c). Dali, ele transferiu-se para Damasco novamente, onde foi perseguido, talvez, na tentativa de levar o Evangelho aos gentios e de convertê-los. Desse modo, percebe-se que a cidade era o campo adequado para o apostolado junto aos gentios. Para Lucas, porém, foi por causa da conversão dos judeus que Paulo permaneceu em Damasco neste período.
Com relação à Jerusalém, sabe-se, que Paulo vai até lá pela primeira vez para conhecer Cefas, assim, ao conviver durante duas semanas com a principal testemunha ocular do ministério terreno, certamente Paulo aprendeu muita coisa sobre o Jesus histórico (segundo Lucas nos Atos, esta primeira ida de Paulo a Jerusalém, o apóstolo estava acompanhado de Barnabé). Paulo se sente, a partir de suas cartas, em igual importância e semelhança aos apóstolos, pois também se sente chamado diretamente por Deus. Mesmo tendo esse pensamento, Paulo não lhes falta respeito e até obediência. É o que se percebe com o fato ocorrido no concílio de Jerusalém, onde Paulo sente em igual poder de discussão que os apóstolos, mostrando assim, que não era dependente ou subordinado dos apóstolos de Jerusalém.
Agora, quanto à Antioquia, temos como fonte o relato de Lucas, que nos informa sobre a fundação da Igreja de Antioquia, na qual Paulo e Barnabé realizaram, durante, pelo menos, um ano, seu ministério apostólico. Em Antioquia nasce e se desenvolve a primeira comunidade cristã mista, formada de judeus e pagãos que acolheram o Evangelho levado pelos judeu-helenistas expulsos de Jerusalém no tempo da perseguição de Estevão.
No que diz respeito à cronologia do apóstolo Paulo, ressalta-se aquela apresentada por Lucas no livro dos Atos dos Apóstolos e aquela apresentada pelo próprio Paulo em suas cartas. Destacar-se-ão apenas alguns pontos relevantes da cronologia paulina sobre o prisma de Lucas e Paulo.
Cronologia Paulina a partir dos Atos
Paulo nasceu em Tarso
Lucas narra por três vezes a sua conversão
Depois de sua conversão Paulo teria voltado para Jerusalém
De Antioquia, Paulo e Barnabé se dirigem para a Assembléia de Jerusalém, logo depois retornam a Antioquia
Paulo faz uma última visita a Jerusalém onde é preso

Cronologia Paulina a partir das Cartas Paulinas
6 a.C. Nascimento de Paulo em Tarso
33d.C. Conversão
34-37 Estada na Arábia e Damasco
37 1ª visita a Jerusalém
51 2ª visita a Jerusalém
56 3ª visita a Jerusalém
67 Morte em Roma

Nesta rápida apresentação destacam-se dois fatos interessantes, o primeiro é que Lucas em sua cronologia busca enfatizar que Paulo, após a sua conversão, vai imediatamente a Jerusalém, e lá é apresentando por Barnabé aos apóstolos, porque Lucas procura relatar a importância da cidade de Jerusalém, pois daí deveria partir o anúncio do Evangelho. O segundo fato curioso é a questão da Assembléia de Jerusalém. Na ótica lucana Paulo e Barnabé partem para a Assembléia tendo como origem a Igreja de Antioquia. Já nos relatos paulinos, o apóstolo procura mostrar uma independência tanto da Igreja de Jerusalém como também da de Antioquia, pois o apóstolo, de acordo com seus escritos, vai a Jerusalém por conseqüência de uma revelação.
Com relação a sua cristologia, Paulo não conheceu Jesus pessoalmente, "segundo a carne", mas o conheceu como Filho de Deus a partir da ressurreição dos mortos, "segundo o Espírito de santidade" (Rm 1,4). Por isso o núcleo de sua mensagem e o querigma cristão, o anúncio da morte e ressurreição de Jesus.
Paulo fala de Jesus não como um teórico, mas como um enamorado. É um apaixonado por Jesus Cristo, sobretudo, pela sua paixão, morte e ressurreição que dá sentido à sua prática e às suas palavras. Jesus Cristo é para ele o Messias prometido, e adquire feições divinas. A própria Bíblia Hebraica é lida, por ele, em chave cristológica.
Jesus Cristo é preexistente, quer dizer, é a primeira criatura, faz parte do plano de Deus já antes da criação do mundo (cf. Ef 1,4; 3,9). A sua manifestação física no mundo, esperada por toda a criação (cf. Rm 8,19-21), realizou-se na plenitude dos tempos (cf. Gl 4,4). O plano global se concluirá quando Jesus devolver ao Pai um mundo inteiramente novo (cf. Rm 14,7-9; 1Cor 15,25.28). Nesse sentido ele é também a sabedoria de Deus, segundo a tradição da sabedoria personificada e preexistente (cf. 1Cor 1,18-25; Cl 1,15-20).
Jesus é o Filho de Deus (cf. Gl 2,20), Filho do Pai (cf. 1Ts 1,10), seu próprio Filho (cf. Rm 8,32), Filho de seu amor (cf. Cl 1,13). Jesus tanto é o Messias sofredor (cf. Gl 1,4; Fl 2,8) como é o Senhor glorioso (cf. 2Cor 13,4; F1 3,10). Ele é o novo Adão (cf. Rm 5,12-21; 1Cor 15,45), o conciliador (cf. Ef 2,14 -16), o Senhor (cf. Rm 10,9; 1Cor 12,3; Fl 2,11).
No que diz respeito a sua eclesiologia A conseqüência de todo o processo de salvação é a formação de comunidades. Paulo está convencido que em Cristo se forma o novo povo de Deus, reunindo gregos e judeus, escravos e livres, mulheres e homens. Isto significa que toda e qualquer pessoa, seja qual for a sua cultura, pode ser irmã ou irmão.
Para expressar essa realidade, ele usa a palavra ekklesia, que em grego indicava a assembléia de cidadãos livres de uma cidade. Mas as Igrejas cristãs são assembléias de Deus ou do Senhor, como a assembléia de Israel, convocada para constituir a aliança corn Deus.
As comunidades cristãs são descritas como uma convocação de santos (cf. Rm 1,6.7). A imagem que exprime essa novidade é a do corpo humano. A Igreja é o corpo de Cristo ou do Senhor (cf. 1Cor 12,12-27).
Essas assembléias se reúnem em casas de família, em número relativamente reduzido. Aí celebram a ceia do Senhor (cf. 1Cor 11,20-25) e o rito do batismo (cf. Gl 3,27). No contexto do Império Romano, entretanto, constituíam novos espaços de convivência, diferentes manifestações culturais, verdadeiras sociedades alternativas.
Por fim, com relação a sua soteriologia destaca-se a seguinte idéia: o benefício que resulta do evento da cruz, pela morte e ressurreição de Jesus, é a salvação dos seres humanos.
Jesus realiza sua entrega de amor para que a humanidade seja salva (cf. Gl 2,20). Assim como Deus libertou os hebreus da escravidão do Egito, Jesus resgata os crentes da escravidão do pecado e da morte (cf. Rm 3,24; Gl 3,13; 4,5). De inimigos de Deus que éramos, na morte de Jesus somos reconciliados (cf. Rm 5,10). Mas a maneira mais eloqüente de descrever a salvação é através da justificação pela graça, por meio da fé (cf. Rm 3,24-25; 5,9).

3) Apocalipse: esperança e fé que vencem o mal.
a) Contexto histórico: Império Romano, mundo judeu e comunidades joaninas.
Acredita-se que o Apocalipse tenha sido escrito como resposta a uma possível imposição do culto imperial no reinado de Domiciano, de 81 a 96 d.C. Com efeito, após a morte de Jesus, tanto o cristianismo como o judaísmo gozavam de certa liberdade religiosa diante do Império Romano. Uma das políticas desse Império era a tolerância com os costumes e a religião dos povos dominados. Aceitar o deus dos dominados não era difícil para Roma, haja vista o politeísmo de sua própria religião. Com o passar do tempo, porém, os imperadores romanos, no fim do primeiro século depois de Cristo, começaram a exigir dos povos dominados a aceitação de seus cultos e, sobretudo, do culto ao imperador como um deus. Isto gerou conflitos entre judeus, cristãos e império romano: a índole monoteísta das religiões destes dois primeiros tornava impossível a aceitação de um homem como Deus. E a rejeição, por parte de judeus e cristãos, do culto ao imperador, soava para Roma como deslealdade política, uma vez que tal culto desejava expressar, precisamente, o reconhecimento da suprema autoridade do imperador e a adesão e submissão a Roma como Império. Negar-se a prestar tal culto era cometer crime de lesa-majestade. Desencadeia-se, por conseguinte, uma perseguição contra as comunidades cristãs, dentre as quais se encontravam as comunidades do Apocalipse.

b) Uso dos símbolos: números, animais, cores e cósmico.
1) SIMBOLISMO CÓSMICO: No Apocalipse, as realidades cósmicas se apresentam em dois níveis de significado: real e simbólico. O céu pode significar o firmamento (6,14; 16,21) ou o espaço de Deus e lugar da esperança, em oposição à terra, lugar de conflito e opressão. Também as estrelas são tomadas em sentido físico (6,13; 12,4), mas também em sentidos simbólicos diversos, quando relacionadas com o “anjo da Igreja” (1,20), uma realidade demoníaca (estrela que cai sobre a terra – 9,1) e com Cristo (estrela luminosa da manhã – 22,16).
Alguns elementos cósmicos passam por mudanças significativas no seu sentido e/ou participam de expressões fortes dentro do Apocalipse:
ð Sol: obscurece-se (9,2), é golpeado parcial (8,12) ou totalmente (16,8) até que, por fim, não seja mais necessário na nova Jerusalém (21,23).
ð Lua: torna-se como sangue (6,12), é golpeada parcialmente (8,12) e dominada pela mulher (12,1) e não será necessária, como o sol, na nova Jerusalém (21,23).
ð Céu: move-se para trás como um rolo de pergaminho (6,14) e desaparece, por fim, para dar lugar ao novo céu (21,11).
ð Estrelas: parte delas é arrancada e jogada sobre a terra (12,4).
ð Terra: é danificada (7,2-3), queimada (8,7) e parcialmente golpeada (11,6).
ð Árvores e ervas são queimadas (8,7).
ð Montes e ilhas são deslocados (6,14) e desaparecem (16,20).
ð Águas tornam-se amargas (8,11) e transformam-se em sangue.
2) SIMBOLISMO TERIOMÓRFICO (ANIMAIS): Vários são os animais citados no Apocalipse: monstro e besta, cordeiro, cavalo, dragão, leão, serpente, águia, escorpião, pássaros, gafanhotos, rã e cão. Os animais são postos como protagonistas, representando realidades que se desenrolam na história do homem mas que transcendem, sob muitos aspectos, a possibilidade de verificação.
3) SIMBOLISMO CROMÁTICO: Também as cores têm forte simbolismo no Apocalipse. As que se destacam são as seguintes:
ð Verde: o verde natural da erva e da vegetação em geral, que representa a “queda” do homem e sua fragilidade e transitoriedade.
ð Vermelho: sugere a crueldade e a violência que não economiza nem mesmo a vida humana. O escarlate, matiz seu, simboliza o luto e também a devassidão.
ð Negro: indica a negatividade e a morte.
ð Branco: É a cor que mais ocorre no Apocalipse e simboliza a vitória. Pode simbolizar também a transcendência (ancião de cabelos brancos), associação a Cristo e à sua ressurreição (vestes brancas), pureza da vida e gozo escatológico (19,8).
4) SIMBOLISMO NUMÉRICO: Os números, no Apocalipse, vão além de meras grandezas quantitativas, tornando-se qualitativos, ou seja, assumindo roupagem simbólica:
ð 1000: É o tempo de Deus, a eternidade, o tempo sem tempo.
ð 40: Um bom tempo (4 x 10)
ð 24: Soma dos eleitos do antigo testamento mais o eleitos do novo testamento.
ð 12: Os eleitos.
ð 10: Limitação humana (como os dedos da mão).
ð 7: expressa a totalidade, pois é resultado da soma de 3 (realidade divina) mais 4 (realidade terrena – os quatro elementos).
ð 6: representa a imperfeição (quase sete).
ð 5: algo bem limitado e curto, pois é a metade de dez.
ð 4: a realidade terrena.
ð 3,5: metade de sete, metade da totalidade, tempo imperfeito.
ð 3: realidade divina.
ð 1/3 e 1/4: As frações representam sempre uma totalidade fragmentária.
3,5 pode aparecer na forma de 3,5 anos ou 42 meses ou 1260 dias. Embora sejam valores idênticos do ponto de vista quantitativo, diferenciam-se quanto à expressão de intensidade (1260 dias parecem ser mais demorados do que 3,5 anos).
Com relação ao número 666, que sempre instigou o leitor, há duas possibilidades de interpretação:
1) O número é resultado da soma dos valores numéricos das letras hebraicas que formam o nome do imperador Nero César. O autor do Apocalipse demonstra, de fato, conhecer bem a língua hebraica. Contudo, o Apocalipse foi escrito em grego e o escritor dificilmente daria um número de cálculo com base no hebraico.
2) O número expressa uma pretensa divindade, triplamente imperfeita, já que 6 é o número da imperfeição. A dificuldade desta interpretação reside no modo como a língua grega expressa o número: não em três algarismos numéricos, mas em três palavras.

c) Pontos marcantes no Apocalipse: evolução e disputa entre o bem e o mal; fé e esperança X sedução das estruturas do mal; poderes terrenos X poderes divinos.
ð EVOLUCÃO E DISPUTA ENTRE O BEM E O MAL. O mal vai sendo, pouco a pouco, desmascarado e identificado ao longo do livro. O autor mostra o mal já presente nas comunidades, na sociedade e no mundo. No capítulo 12 tal conflito assume forma explícita no combate entre a mulher e o dragão. A mulher representa as igrejas-comunidades que, num tempo de grande tribulação, mantém a profecia e a resistência, dando assim à luz o projeto de Deus na história (o filho prestes a vir à luz). O dragão representa a mentira que gera e conserva a sociedade injusta e tenta devorar o fruto da mulher. Deus, por sua vez, não permite que o fruto das comunidades proféticas seja destruído, mas vem em seu auxílio, protegendo-as, amando-as e alimentado-as diariamente, enquanto durar o tempo da tribulação. Também a batalha entre os anjos de Deus e Satanás, relatada no mesmo capítulo, deixa claro que Deus não compactua com o mal, nem é origem dele. Esta disputa entre o bem e o mal se prolongará ainda pelo resto do livro, até que o mal seja definitivamente aniquilado, dando lugar aos céus novos e terra nova (capítulo 21).
ð FÉ E ESPERANÇA X SEDUÇÃO DAS ESTRUTRAS DO MAL. A sociedade injusta apresenta-se de forma atraente, podendo levar ao fascínio os próprios cristãos empenhados na profecia e na resistência. Mesmo o autor do apocalipse fica maravilhado (admiração, na Bíblia, é o passo que antecede a adoração) ao contemplar a grande prostituta que simboliza Roma, no capítulo 17. É necessário o discernimento para perceber que por trás de tanto poder e riqueza da prostituta se encontra um ídolo que usurpa o lugar de Deus. O cristão não pode se iludir: a prostituta “caminha para a perdição” (17,8), será destruída por seu próprio pecado (18) e só os que permanecerem fiéis ao testemunho da fé habitarão a nova Jerusalém (21).

d) Novidades em relação a Jesus Cristo, a Igreja, a esperança e a escatologia.

1) JESUS CRISTO: Cristo é chamado “Cordeiro”, “Testemunha fiel”, “Amém”, “Verbo de Deus”, “Filho de Deus”, “Estrela brilhante da manhã”. O autor sintetiza sua concepção de Cristo na visão inicial (Ap 1,12-20): morto, ressuscitado, vivo, Cristo leva adiante, com vigor, a sua Igreja. Exerce com ela dupla função: julga-a com sua palavra, purificando-a (caps. 1-3); ajuda-a a derrotar todas as forças hostis que a ameaçam, tornando-a plenamente esposa (caps. 4-21). Assim, Cristo sobe ao trono de Deus, prolongando na realização histórica da Igreja aquela que fora sua vitória pessoal alcançada na ressurreição.
2) A IGREJA: Ela é um tema fundamental para todo o Apocalipse. O autor revela uma experiência muito viva a respeito dela. Fala de totalidade de igrejas, de igrejas locais; interessa-se pela vida interna da Igreja; procura determinar e exprimir as leis de seu comportamento com relação às forças que lhe são hostis. A Igreja é apresentada em caminhada, com todas as dificuldades e tensões que isso comporta. Mas possui também uma meta clara e definida: o aspecto pessoal que a liga a Cristo, constituindo-a esposa, e o aspecto externo e social que fazem dela uma “cidade” encontrarão sua síntese final na Jerusalém celeste, a cidade-esposa.
3) ESPERANÇA E ESCATOLOGIA: A escatologia ocupa lugar de destaque no Apocalipse. Porém, existem interpretações diferenciadas quanto a seu significado. Alguns vêem nele uma escatologia presente que se refere exclusivamente a fatos contemporâneos do autor (como o culto ao imperador). Outros falam de escatologia como futura: o Apocalipse se refere à história universal da Igreja, revalando as grandes constantes da história e instruindo sobre o desenvolvimento evolutivo em grandes períodos. Na verdade, o Apocalipse procura combinar ambas: reflete sobre fatos de seu próprio tempo, apresentando, contudo, um paradigma eclesial sempre atual e supratemporal.

TEOLOGIA FUNDAMENTAL

I – TEOLOGIA DA REVELAÇÃO

1) O Concílio Vaticano II e a Revelação: de uma visão extrinsecista, proposicional e abstrata a um modelo mais relacional, dinâmico e existencial.

a) As respostas da Apologética clássica e seu contexto.
A justificação racional da revelação é tão antiga quanto a própria revelação neotestamentária. Lucas preocupou-se em oferecer a Teófilo uma “exposição ordenada para que ele conhecesse a solidez daqueles ensinamentos que recebera” (Lc 1,4). Na Antiguidade e na Patrística, as apologias assumiam a defesa do cristianismo diante do paganismo e do judaísmo. Na Idade Média, com o declínio do paganismo, as disputas apologéticas se voltam contra as heresias surgidas no próprio seio da Igreja, não faltando, porém, enfrentamentos com o judaísmo e o islamismo. Contudo, ainda não havia acontecido a ruptura entre fato e conteúdo da revelação. À luz da fé, se aderia à revelação, fato e conteúdo.
A apologética clássica (teologia fundamental tradicional) nasce no início da modernidade, como resultado de uma exigência histórica contra os adversários da fé católica. A confecção desta apologética passou por diversas etapas, enquanto respondia aos diversos desafios históricos com os quais se defrontou a fé.
Num primeiro momento, a apologética buscou oferecer uma resposta à Reforma Protestante do século XVI. A teologia dos reformadores acentuava os aspectos subjetivos (sola fide, sola gratia e sola Scriptura) para a justificação e salvação e insistia no papel do Espírito Santo. No momento em que pela força da graça e da fé se adere ao conteúdo da Revelação, tem-se a certeza de sua origem divina. A Igreja Católica, por sua vez, vai acentuar os fatores objetivos: necessidade da apresentação normativa do objeto da fé por parte da Igreja e a possibilidade de uma justificativa racional do fato da revelação – introduzindo a distinção entre fato e conteúdo da revelação. Atenção especial era dada à questão da Igreja, apresentada como única Igreja verdadeira em meio às diversas confissões e denominações cristãs.
Num segundo momento, a apologética se debateu com os desafios apresentados pelos libertinos e ateus práticos do século XVII. Estes se apresentavam como espíritos fortes, emancipados da autoridade religiosa no que se refere às crenças e à prática dos costumes. Surge na França, especialmente entre jovens da corte e da rica burguesia, que, através de atitudes escandalosas, zombavam dos pregadores e opunham-se a práticas da Igreja. Muitos adotaram posturas fideístas e anti-racionalistas, criticando a positividade das religiões e do cristianismo. Alimentavam-se do espírito científico que os atingia pela influência da obra de Bacon, em oposição às ciências que se apoiavam na autoridade e na razão. Em resposta a eles, a apologética buscou demonstrar a necessidade da religião e a positividade do cristianismo.
Num terceiro momento, a apologética se estruturou para enfrentar os deístas e enciclopedistas do século XVIII. Os deístas partiam do dado fundamental de que o mundo é obra e criação de Deus e, portanto, uma máquina perfeita. Deus é grande arquiteto e engenheiro. Qualquer revelação histórica ou atividade de Deus para além da criação perturbaria o curso do mundo e deporia contra a perfeição da criação e contra o próprio Deus. Assim, as verdades da fé são reduzidas a verdades puramente racionais (compreensíveis e demonstráveis pela evidência racional). Contra eles, a apologética insiste no caráter obscuro e indemonstrável das verdades sobrenaturais. Paradoxalmente, acaba se tornando prisioneira do racionalismo, ao buscar a todo preço fornecer justificativa racional do fato da revelação. Desenvolveu-se uma apologética dos sinais externos, das profecias e milagres, para demonstrar a evidência do fato da revelação. Defendia-se ardorosamente, também, a veracidade da revelação e religião cristãs, elencando provas convincentes do fato fundamental de Jesus Cristo ser o enviado de Deus.
No século XIX, o Concílio Vaticano I elabora uma resposta oficial e solene ao racionalismo e ao tradicionalismo. O primeiro afirmava a radical autonomia da razão humana, rejeitando, consequentemente, toda revelação sobrenatural e divina. O segundo se baseava no contrário: numa desconfiança e descrédito em relação à razão em nome do sentimento, da experiência subjetiva e da necessidade da tradição para o conhecimento. O Concílio afirma os dois pólos: a possibilidade e a existência de uma revelação sobrenatural (contra a autonomia absoluta da razão) e o poder da razão humana de conhecer a verdade (contra o irracionalismo fideísta).
No início do século XX aparecem os tratados de apologética buscando justificar seu estatuto teórico perante a filosofia e a teologia dogmática. E desta maneira ela permaneceu no ensino das faculdades e seminários eclesiásticos até o Concílio Vaticano II, sendo estereotipada numa forma de defesa e ataque contra a Reforma e o mundo moderno.

b) A subjetividade moderna e pós-moderna e seus desafios para a compreensão de Revelação.
O fenômeno da modernidade e sua intensificação, que se costuma chamar de “pós-modernidade”, trazem grandes dificuldades à compreensão e aceitação da revelação cristã. Eis alguns dos principais desafios:
1) Paradoxo do fato particular com pretensão universal: A revelação cristã é atravessada por um paradoxo que se tornou para o homem moderno verdadeiro escândalo. É um fato particular, acontecido no seio de um povo e na pessoa de um judeu do século I, mas que apresenta a pretensão de um significado universal salvífico, de ser a Palavra de Deus para toda a humanidade de todos os tempos. É verdadeiro escândalo que o pequeno e frágil povo de Israel e a pessoa de Jesus Cristo possam, na sua particularidade e contingência histórica, pretender fazer depender de sua mensagem e pessoa respectivamente a relação ao Absoluto, de maneira última e definitiva. Isso se choca com a mentalidade moderna e pós-moderna, que primam por serem tolerantes, relativistas, pluralistas, de amplo ecumenismo e contra toda forma de totalitarismo.
2) Caráter de obrigatoriedade: A pretensão da revelação de significado universal implica um caráter de obrigatoriedade, uma dimensão autoritativa que é percebida como “imposição autoritária”, contra a qual a razão moderna age violentamente. Toda mensagem está condicionada por sua própria cultura e só faz sentido dentro deste quadro cultural. Fora deste quadro, pode tornar-se objeto irrelevante e sem sentido. Assim, uma mensagem que se dirija ao conjunto da humanidade, desconhecendo a diversidade dos povos, culturas e religiões está fadada a ser rejeitada desde o início.
3) Tensão com as ciências literárias: O conceito de revelação pode inibir o estudo científico e literário dos textos bíblicos, envolvendo-os com o manto da sacralidade. A razão crítico-literária, por sua vez, volta-se contra a concepção de revelação, como inibidora de sua atividade científica. Pretende tratar os escritos da revelação como obra humana, sujeita a todas as regras da escritura e não suporta que eles sejam considerados intocáveis, graças ao fundamentalismo da revelação.
4) Mentalidade anti-intervencionista: A mentalidade moderna cultua a objetividade e dá primado à causalidade eficiente. Os objetos são pensados isolada e separadamente neles mesmos, e afetam-se entre si de maneira extrínseca, pela causalidade eficiente. A ordem natural é vista como fechada e autônoma. A comunicação de Deus passa a ser compreendida como intromissão intervencionista, violentando a autonomia, a liberdade, a maturidade, a responsabilidade, a integridade, a autenticidade humanas.
5) Estruturas sociais injustas e o fato dos pobres: Na América Latina, a credibilidade da revelação vem sendo ameaçada por causa de sua ineficácia para a transformação da realidade social injusta e até por sua conivência e justificação dessa realidade. O continente em que a revelação cristã é mais aceita, por concentrar em si a maior massa de cristãos do mundo, ostenta estruturas sociais escandalosas, como em nenhum outro lugar. Tal situação põe em dúvida a divindade e a força de tal revelação.
6) Situação de dominação cultural: A consciência dos movimentos negro e indígena, no contexto latino-americano, levantam questões a aspectos impositivos da revelação cristã, que não tem respeitado a autonomia destas culturas. É o problema da inculturação. A mensagem cristã precisa ser pensada em vista de estabelecer condições para um diálogo inter-cultural.

c) A “Dei Verbum” como “gestis verbisque”.

Na compreensão da Dei Verbum, aprouve a Deus revelar-Se a Si mesmo e tornar conhecido o mistério de Sua vontade, pelo qual os homens, por intermédio do Cristo e no Espírito Santo têm acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina. A revelação divina é entendida como um diálogo, no qual Deus tem a iniciativa e cujo ápice é a encarnação. Tal plano de revelação se concretiza mediante gestos e palavras (gestis verbisque) intimamente conexos entre si. As obras realizadas por Deus na história da salvação manifestam e reforçam os ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras. E as palavras, por sua vez, proclamam as obras e elucidam o mistério que está contido nelas.
Jesus Cristo é a Palavra substancial que o Pai diz e pelo qual fez toda a criação e que o Espírito aprofunda no coração.
O plano de Deus é que a revelação seja transmitida a todas as gerações. Daí o papel da tradição, a respeito da qual os apóstolos e seus sucessores têm uma missão única. Há uma mútua relação entre ela, a Escritura e o magistério.

2) JESUS CRISTO COMO PLENITUDE DA REVELAÇÃO

A Revelação é experimentada pelos homens dentro de um processo histórico. Esse fator histórico é de importância crucial, especialmente na quilo que tange a Revelação. Longe da historicidade humana o Mistério da revelação divina se tornaria vazia e inesperimentavel.
Desse modo, Revelação e processo histórico trilham caminhos justapostos onde o homem em seu habitar no espaço tempo vai experimentando paulatinamente os desígnios e as intervenções de Deus na sua vida. É na história do Povo de Israel e mais especificamente nos momentos de maior tensão que esse mesmo povo sente a mão de Deus que os protegia contra um eventual risco de sua extinção.
Dentro desse processo histórico Deus quis contar com colaboradores (líderes) do povo, sendo presença no meio do povo através deles. Dentro desse processo cíclico, acontece uma dinâmica histórica, que dentro de uma dialética de distanciamento e aproximação, essa mesma história aprocima-se de seu cume; onde o próprio Deus se faz presente em meio aos homens através de sua Encarnação na Pessoa de Jesus Cristo na Plenitude dos tempos (Gl 4,4).
A Encarnação de Jesus Cristo, de forma alguma significou um rompimento com os acontecimentos anteriores, pelo contrário, já havia vindo sendo preparada desde os mais primitivas intervenções de Deus na história. Com a Encarnação de Deus na história poderíamos pensar que essa veio a conhecer o seu fim e que a humanidade agora seria elevada a uma condição supra temporal; sendo Jesus apenas um ser divino incapaz de experimentar o processo histórico e terreno onde se encontra os homens.
A Encarnação do Verbo se dá na história da humanidade e o mesmo Deus que já vinha sendo experimentado pelos antepassados agora se faz presente na vida e nas ações de Jesus de Nazaré. Na história humana Jesus se revela através de sua proposta de vida nova, Paixão, Morte e Ressurreição.
Em quanto no Antigo Testamento a Revelação aparece dispersa nos acontecimentos de muitos séculos de história; no Novo Testamento, tudo se concretiza no acontecimento único de Cristo. Nele, Deus fala de modo definitivo e de maneira única (9Hb 1, 1-4). Esse evento Cristo é experimentado de maneira ocular por seus Apóstolos, que também dentro de um processo histórico, foram assimilando a proposta divina de Cristo de implantar o Reino de Deus e, após sua Ressurreição receberam o Espírito Santo, iniciando um processo de sucessões que chegaram até a nossa atualidade sedo o sinal vivo da presença de Cristo entre nós; sendo a sua Igreja, o sinal mais expressivo de sua presença.
Se é dentro de um processo histórico que a humanidade faz a experiência de Deus que se encontra numa dimensão Kairológica; somos chamados a alargar o nosso olhar e levarmos em conta a situação plural na qual se encontra todos os povos. Visto dessa forma, devemos respeitar a historicidade de cada cultura, de cada região geográfica; pois o ser humano em sua liberdade e em sua situação histórica é chamado a experimentar a sua transcendentalidade. É como afirma Santo Agostinho: “Deus ao criar o homem deixou dentro do mesmo um espaço vazio para que pudesse Buscá-lo”.
Respeitar as diversas fases históricas no que se refere a experiência de Deus, significa valorizar a liberdade de cada povo e a liberdade de Deus de se manifestar a seu modo nas diversas culturas.
Para nós cristãos católicos, cabe a incumbência de deixar que a nossa história seja um cenário aberto as ações de Jesus Cristo. Que nas catástrofes experimentadas por nossa realidade atual (guerras, corrupções, aquecimento global) possamos recuperar o projeto de jesus; que é de vida plena para todos. Para que em meio a dura realidade de sofrimento enfrentada por nossos povos dos países subdesenvolvidos, possamos perceber as semelhanças entre nós e nossos antepassados, lutando assim da mesma forma por liberdade e justiça social.

TEOLOGIA DOGMÁTICA

I - TRINDADE

1 NOSSO DEUS É UNO E TRINO

1.1 – A Trindade no Novo Testamento: História e Exegese

Nos escritos do Novo Testamento não encontramos uma doutrina trinitária já formulada e definida, porém presenciamos a fé na Trindade através das doxiologias, no contexto catequético e principalmente na teologia batismal. Estes textos nos apresentam características explicitas, fornecendo dados seguros para que Deus possa ser entendido através de uma dimensão trinitária. É somente com o início das primeiras comunidades e com as apologias frente as heresias, que a fórmula trinitária de Deus será defendida, estudada e dogmatizada.

a) Os Escritos de Paulinos
As diferentes tradições do Novo Testamento são explicações da confissão de Jesus de Nazaré como o Cristo e Kyrios, como o Filho de Deus, para cuja posição de poder ele foi empossado:
Segundo Paulo: com a ressurreição dentre os mortos (Rm 1,4s). essa posse, se deu segundo o poder do Espírito Santo; sim, é o próprio Espírito que despertou a Jesus Cristo dentre os mortos (Rm 8,11). Paulo interpreta a experiência da comunidade quando descreve à presença do Glorificado como realidade do Espírito. Ele toma posse dos crentes no Espírito, de modo a se tornarem membros de seu corpo (1Cor 6, 15-20; 12,13) e possuem nos dons espirituais (carismas) a eles concedidos um penhor da glória vindoura (2Cor 1,22). Nesse sentido se poderia falar de uma “unidade funcional” do Espírito com o Jesus glorificado (2Cor 3,17). Paulo vê o espírito agindo também em “unidade funcional” com o Pai, visto que o Pai desperta a Jesus dentre os mortos “no Espírito” (Rm 8,11).
O Espírito de Deus, que habita nos crentes e em cujo poder eles são ressuscitados como antes deles, Jesus Cristo, é o Espírito de Cristo, o Cristo “em nós”, que nos torna semelhantes a Cristo e filhos e filhas de Deus (Rm 8,9-11, 14-17). Aqui se evidencia quão pauco 2Cor 3, 17 pode ser entendido como simples identificação do Espírito como o Senhor glorificado: à “unidade funcional” corresponde um triplo direcionamento dos crentes para seu Deus, que ; como que uma fórmula breve da experiência de fé dos crentes para seu Deus; também pode ser articulada como tal no contexto da teologia do batismo (Gl 3,26s). Deus lhes deu o Espírito de seu Filho nos corações, que os torna filhos e os liberta do domínio dos poderes do mundo presente (Gl 4,4-7). No Espírito do Filho torna-se presente a obra redentora do Filho de Deus que, com sua vida e morte, adquiriu para os crentes o direito de filhos livres (4,5). O Espírito de Deus ressuscitará os crentes dentre os mortos (Rm 8,11), bem como o Filho Jesus Cristo. Esse nexo, amplamente explicado na Epístola aos Gálatas , condensa-se na bênção final da Segunda Epístola aos Corintios em uma fórmula triádica, de cunho litúrgico, que correspondendo ao motivo da Epístola enfatiza o poder do Espírito Santo criador de comunhão. “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo sejam com todos vós” (13,13). Na Primeira Epístola aos Corintios encontra-se a referência triádica ao Espírito, ao Senhor e a Deus (o Pai) no contexto dos diferentes dons espirituais que, em toda a sua variedade, efetuam uma e o mesma coisa, porque procedem da “unidade funcional” do Pai, do Filho e do Espírito e, de certa forma, os retratam: “Recebemos diferentes dons da graça, mas é um e o mesmo Espírito; e diferentes maneiras de servir, mas é um e o mesmo Senhor, e diferentes modos de ação, mas é um e o mesmo Deus que efetua tudo em tudo” (12, 4-6). O hino introdutório à epístola dêutero-paulina aos Efésios (1,3-14), igualmente de cunho litúrgico, enaltece o Pai que nos aceitou como filhos por meio de Jesus Cristo e nos chamou para sermos seus herdeiros; no Espírito Santo chegamos à fé, ele é o penhor da herança que alcançaremos com a redenção consumada. É de se notar que Ef 1, como já antes em Rm 8, a menciona Pai, Filho e Espírito lado a lado e em correlação mútua, onde fala da aceitação (que acontece no batismo) da pessoa convertida pelo pai como filho no Espírito Santo (Ef 4,4). Essa associação de batismo e reflexão trinitária inicial não é acaso; no batismo a pessoa é conformada com Jesus Cristo; e esse torna-se filho. Para a participação na cruz bem como no ressuscitamento do Filho único (Rm 8, 29 e 6,8), acontece no Espírito Santo, que faz com que o crente possa experimentar a condição de filho como libertação dos poderes do mundo.

b) Evangelhos Sinóticos:
Espírito leva o crente para dentro da comunhão de destino com o Filho e de sua comunhão de vida com o Pai. Essa ênfase não se encontra nos sinóticos. Para eles, Jesus é o ungido com o Espírito (o Messias), com o qual inicia a missão (o envio) escatológico do Espírito. Com o batismo, o Espírito toma morada nele (Mc 1,9-11par); sim ele já participou efetivamente na concepção de Jesus (Lc 1,35; Mt 1,20) e faz o novo começo na história de Deus com os seres humanos que pode ser esperado somente de Deus e que trará a seu povo a salvação de seus pecados, Jesus está cheio do Espírito Santo – como o elabora sobretudo Lucas (Lc 4,4; At 10,38); sua vida e obra tornam o poder recriador do Espírito experimentável; sua autoridade cheia do Espírito testemunha a irrupção do Reino de Deus (Mt 12,28 par).
Em relação ao Pai, que, segundo Mateus, também é nosso Pai, Jesus tem consciência de ser o Filho de Deus, na singular vocação daquele que tem que revelar a vontade do Pai, convidar para o Reino de Deus e trilhar o caminho até o fim, que tem que beber o cálice (Mc 14,36par). Contudo sabe-se tão intimamente unido ao Pai que tem a pretensão de ser o único que conhece o Pai e capaz de transmitir esse conhecimento (Mt 11,27; Lc 10,22). Sem dúvida conhecer significa aqui mais do que o saber meramente teórico: (re)conhecer o Pai significa: ter intimidade com ele, viver em comunhão íntima com ele e por isso, ter condições de fazer valer sua vontade com a autoridade direta do sabedor.

c) Tradição Joanina:
A tradição joanina faz do conhecimento do Pai o tema básico em reinteradas reelaborações: o Filho conhece o Pai porque é o que é a partir dele (Jo 7,29); ele o conhece e guarda sua palavra (8,55); anuncia a sua palavra, a fim de que os homens conheçam o Pai, pois quem conhece o Filho (quem tem comunhão com ele) reconhece que o Pai está nele e que ele está no Pai (10,38). Esta é a verdade com cujo conhecimento os crentes têm a vida: o amor que faz com que o Filho permaneça no Pai, e o Pai no Filho e que tome morada naqueles que guardam a palavra do Filho e o amam (14,22). Na oração sacerdotal, o Jesus joanino roga ao Pai que os crentes sejam um entre si e um “em nós”, assim com o Pai está no Filho e o Filho no Pai (17,21); o amor que faz com que o Pai esteja no Filho, e o Filho no Pai – a verdade – deve estender-se aos crentes, para que com a verdade tenham vida e “o mundo conheça que tu me enviaste e os amaste como também amaste a mim” (17,23). O Espírito conduzirá a essa verdade, sem acrescentar qualquer coisa àquilo que o Filho falou perante os homens. Quando vier o Espírito, os discípulos conhecerão “que eu estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós” (14,20; cf. 14,16s). no Espírito e em seus efeitos os crentes experimentam que Jesus Cristo (com o Pai) permanece neles (1Jo 3,24 respectivamente 4,13). O Espírito testemunha que o amor de Deus que foi revelado entre os seres humanos em seu Filho, toma posse dos crentes e os inclui na comunhào de amor do Filho com o Pai (1Jo 4,16). É bem verdade que a tradição joanina não fala expressamente do Espírito do amor, mas o envio do Paráclito depois do ressuscitamento de Jesus Cristo (Jo 14,16) alcança sua consumação no fato de “conduzir” os crentes à verdade – ao amor doador de vida, que une o Pai com o filho e quer unir os crentes entre si e com o Pai e o Filho. Assim o conteúdo nos leva a compreender a concessão pós-pascal da comunhão do amor do Pai e do Filho aos crentes como a abra do Espírito e, nesse sentido, a associar a autodiferenciação trinitária do Pai com a definição de Deus da primeira Epístola de João (4,8-16) Deus é amor.

d) Fórmula batismal de Mateus
As tradições do NT não conhecem nenhuma “doutrina” da Trindade no sentido de refletirem a inter-relação e correlação do Pai, do Filho e do Espírito Santo como a relação de três seres divinos. Essa inter-relação e correlação passa a ser cogitada – de modo direto ou indireto – sobretudo onde a situação histórico-salvífico dos crentes pós-pascais é tematizada: no Espírito eles recebem (e se lhes torna experimentável) o que lhe foi tornado acessível pelo Filho em obediência ao Pai; o Espírito faz com que a iniciativa salvífica do Pai – o envio de seu Filho – possa alcançar seu objetivo entre os homens e encontrar fé. Essa situação histórico-salvífico se torna tema precípuo da reflexão da fé em associação com o batismo. Por isso não supreende que à única fórmula trinitária do NT, que menciona o Pai, o Filho e o Espírito Santo diretamente lado a lado, é transmitida no contexto da ordem do batismo do Senhor glorificado (Mt 28, 19). Essa fórmula pressupõe, sem dúvida, um processo de desenvolvimento mais longo. Ela substitui a fórmula trinitária do batismo (batismo, “no nome de Jesus Cristo”) em At 2,38, respectivamente 10,48 (cf. 8,16; 19,5; 1Cor 1,13.15). o nome representa a pessoa. Ser batizado em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo significa introduzir o batizado na comunhão destas três pessoas e entregá-lo à sua especial proteção. Sabemos pela Didaqué e por São Justino (são os primeiros testemunhos) que havia, previamente ao batismo, uma especial catequese sobre o mistério cristão. Nesta iniciação os catecúmenos aprendiam que o Pai enviara seu Filho e que o Espírito fora derramado nos corações dos fiéis. E assim, a comunidade entregava o batizado ao Senhor glorificado e o confiava a sua proteção. Ela coloca a envocação do Senhor no contexto da condição de Filho acontecida e experimentável no Espírito, que já fora formulado pela teologia do batismo de Paulo. A fórmula batismal triádica em Mateus 28,19 é o resumo válido da verdade salvífica da fé, experimentada na realização da convesão e proclamada no ato do batismo, certamente também resumo da catequese batismal que leva o batismo e visa o credo batismal.
A fórmula batismal trinitária não é testemunhada em nenhum dos outros evangelhos e constitui uma particularidade do Evangelista Mateus. A fórmula de São Mateus circulou nas comunidades durante vários anos antes de ser incorporada na tradição evangélica e ganhar seu lugar atual. As comunidades primitivas não receavam colocar semelhantes frases na boca do Ressuscitado, pois estavam convencidas de que Ele estava presente (“eu estarei convosco todos os dias até a consumação dos séculos” Mt 28,20), conduzia os fiéis na compreensão crescente de seu ministério. Esta compreensão já supunha a divindade dos três Nomes, sem ainda chegar a uma formulação doutrinária de tal convicção. Mas é sintomâtico que já’pelos anos 85, época de elaboração do Evangelho de Mateus, se constate uma formulação nitidamente trinitária da fé da comunidade mateana.

1.2 - O dogma trinitário no Magistério da Igreja: Concílio de Nicéia, Constantinopla I e II, Latrão IV, Lyon II e Florença.

Dentre os muitos pronunciamentos oficiais do Magistério destacamos algumas reflexões que nos apresenta a substância da fé dogmática sobre a Trindade.

a) Concílio de Nicéia
Em 19 de junho de 325 o Imperador Constantino convocou para o Concílio de Nicéia. 318 bispos, reunidos até 25 de agosto do mesmo ano. Os bispos conciliares definiram de forma solenimente uma fórmula que abre o caminho para uma concepção trinitária de Deus., contra os arianos que sustentavam que Jesus era apenas semelhante a Deus mas não igual a Ele em natureza.
Em primeiro lugar anunciaram a fé na Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo; em segundo lugar, definiu-se a relação entre o Pai e o Filho; são da mesma substância; aqui ocorre a palavra-chave homooúsion, da mesma essência e substância, aquilo que une a trindade; em terceiro lugar: usou-se a palavra hipóstase como sinônimo de ousia ou substância. assim era até Nicéia.; posteriormentem sob a influência de Orígenes e pelos Capadócios, hipóstase vai ser sinônimo de prósopon, de pessoa para designar o que distingue em Deus. Por fim se fala do Espírito Santo sem precisar nada objetivamente, o que será feito depois de Nicéia até o primeiro Concílio de Constantinopla em 381; mas Ele cosnta como pertencendo aos Credo comum de toda a Igreja. Nicéia decide o caminho posterior da cristologia e da doutrina sobre a Trindade, porque deixa claro que sob o nome de Deus coexistem três: Pai, Filho e Espírito Santo, constituindo a unidade e unicidade de Deus.

b) Concílio de Constantinopla I
O que Nicéia explicitou-o plenamente o Concílio ecumênico de Cosntantinopla que reuniu 150 bispos entre maio e julho de 381: o Espírito Santo é da mesma natureza do Pai e do Filho, é, portanto, Deus. Assim, o Concílio de Constantinopla retoma o credo de Nicéia completando-o:
Neste credo se indica com toda a clareza o que é três em Deus: Pai, Filho e Espírito Santo: o texto conciliar não usa a expressào típica que foi cunhada e aceita por todos; três hipóstases (três pessoas), por obra e esforço de São Gregório Nazianzeno. Mas exprime-se com igual clareza a unidade de substância ou natureza entre os três. Na fórmula apenas se diz que o Espírito Santo procede do Pai. Deixa-se em aberto a forma como procede: se diretamente ou através do Filho ou com o Filho.
A base dos pontos assegurados por Nicéia e Constantinopla de que Deus é três pessoas ou hipóstases e uma substância ou ousia (essência) contruiu o genial Santo Agostinho o primeiro tratamento verdadeiramente sistemático do dogma trinitário. Parte da unidade absoluta de Deus. Deus significa, não como os gregos, em sentido absoluto, o Pai, mas a Trindade das Pessoas, pois “a Trindade é o único Deus verdadeiro”. Desta unidade passa à consideração de cada uma das pessoas. Esta diferenciação da unidade vem da relação absolutamente substancial que é própria de Deus. As relações absolutas constituem o único Deus verdadeiro que se Chama Pai, Filho e Espírito Santo. A unidade na trindade e a Trindade na unidade eis a fórmula básica de Agostinho.
Essa expressão teológica da fé Trinitária comum ganhou corpo num credo chamado Quicumque. Ele possui, entretanto, um limite interno porque justapõe a unidade e Trindade sem por em evidência suficiente a articulação de ambos. A fé católica é esta: “Que veneramos a um só Deus na Trindade e a Trindade na unidade; sem confundir as pessoas nem separar a substância. Assim, Deus é Pai, Deus é Filho, Deus é (também) Espírito Santo; e no entanto, não são três deuses, senão um só Deus. Assim, Senhor é o Pai, Senhor é o Filho, senhor é (também) o Espírito Santo; é no entanto, não são três senhores, senão um só Senhor. Nesta Trindade nada é antes nem depois, nada maior ou menor, senão que as três pessoas são entre si co-eternas e co-iguais, de sorte que, como antes se disse, por tudo deve-se venerar tanto a unidade na Trindade quanto a Trindade na unidade. Unidade de substância e diversidade de pessoas co igual dignidade; por isso a cada uma se atribuem todos os atributos divínos.

c) Concílio de Latrão IV
O IV Concílio de Latrão (1215) reafirmou a unidade divina, própria da Trindade, pois, nas palavras do Concílio, o abade Joaquim “confessava não ser esta unidade própria e verdadeira, senão coletiva e por semelhança, à maneira como muitos homens se dizem um e muitos fiéis uma Igreja”. Contra isso, o Concílio ensina que não se pode dizer “a natureza não engendra, nem é engendrada nem procede senão é o Pai quem engendra, o Filho que é engendrado e o Espírito Santo quem procede, de modo que a distinção está nas Pessoas e a unidade na natureza. Conseqüentemente, embora, um seja o Pai, outro o Filho e outro Espírito Santo, não são outra coisa: senão o que é o Pai, o mesmo é absolutamente o Filho e o Espírito Santo; de modo que, segundo a fé ortodoxa e católica, são cridos como consubstancial”.
Talvez a fórmula mais clara nos termos e no equilíbrio entre uma visão econômica e imanente da Trindade devemo-la ao IV Concílio de Latrão. Trata-se de dois textos, um contra os Valdenses e Albigenses e outro contra o abade Joaquim. Nestas duas formulações encontramos a expressão clássica do dogma trinitário: uma natureza única e três Pessoas distintas; a distinção das Pessoas entre si se estabelece a partir de sua origem: o Pai sem origem, o Filho do Pai e o Espírito Santo do Pai e do Filho. O promunciamento do Concílio equilibra a Trindade imanente (as Pessoas em si mesmas) com a Trindade econômica ( sua ação na história).

d) Concílio de Lyon II
Por razões ao mesmo tempo religiosa e políticas, tentativas de união entre Oriente e Ocidente se presisaram no Concílio de Lyon (1274). Durante a missa solene celebrada pelo papa, os gregos repetiram duas vezes em sua língua “que procede do Pai e do Filho”. A reconciliação entre Oriente e Ocidentre foi então celebrada solenemente.
Logo de saída os latinos impunham aos gregos um Filioque puro e simples. Não levaram em consideração as aberturas de Gregório de Chipre acerca da “manifestação eterna do Espírito Santo pelo Filho”. Que constitui a subsistência do Espírito. Segundo Gregório, o Espírito “recebe sua subsistência do Pai, mas subsiste pelo Filho e mesmo do Filho. É uma matiz sutil “entre a ideia de causa e a razão de ser”, mas que podia abir um caminho de convergência. Os latinos faziam igualmente prevalecer seu ponto de vista sobre os demais itens do contencioso doutrinal: doutrina do purgatório, teologia sacramental, primado da Igreja Romana. Desta forma: a formulação de Lyon II do credo, tipicamente latina, retoma as expressões chaves de Santo Agostinho, tentando responder a certas objeções dos gregos. Se elas se opõe evidentemente às afirmações de uma pocessão do Espírito Santo “a partir só do Pai”, também afirma que essa processão é eterna: isto é, não há prioridade temporal da geração do Filho sobre a processão do Espírito, ainda que o Filho tenha aí o seu papel. De igual modo, essa processão não se faz a partir de dois princípios e não é constituida de duas aspirações. O ato da origem do Espírito Santo é único e eterno, isto é, tem um só princípio ou causa produtora. Mas não se deve compreender que o Pai e o Filho suprimem sua distinção quando espiram, como se se fundissem numa só hipóstases. Pode-se lamentar, contudo, que o “principalmente do Pai” afirmado por Agostinho não reapareça nessa declaração.
Os gregos, com efeito, faziam a seguinte objeção: se o Espírito tem dois autores, há dois princípios na Trindade, que é então dividido em duas. O Concílio pretende repelir essa interpretação: o Pai e o Filho não Agem no ato de produzir o Espírito como se fossem duas fontes da divindade, mas em nome de sua divindade comum e, portanto, por uma ação comum. Desse modo, a hipóstases do Espírito Santo tão pouco é composta de duas partes, como objetavam os gregos, pois a emissão é única. O Concílio revindica, enfim, o caráter tradicional dessa doutrina.
Infelizmente, ele lança uma condenação solene sobre os que recusão o filioque ou deformam o seu sentido. Esse anátema ainda hoje é ressentido dolorosamente pelos ortodoxos. Insere-se na dinâmica da exclusão recíproca das duas doutrinas, que se desenvolviam desde Focío.

e) Concílio de Florença
O Concílio de Florença (de 1431 a 1447), depois de dificeis discussões, formulou um texto de conciliação dogmática entre a concepção ocidental do Filioque e aquela clássica dos gregos do Pai, através do Filho. Para os gregos Deus é fundamentalmente o Pai: dele tudo procede, pois é a causa única de tudo e de todos, também do Filho e do Espírito; se o Filho é também causa, o é de uma forma recebida do Pai; por isso distinguem as duas causalidades. Os ocidentais, englobam as duas causalidades pela única expressão Principium. Ao espirarem juntos o Espírito Santo, o Pai e o Filho não fundam dois principíos: são um só princípio, porque o Filho juntamente com o Pai espira o Espírito Santo enquanto é Filho do Pai e não Filho simplesmente. Sendo assim, as expressões: o Espírito Santo procede do Pai e do Filho (ocidentais) e o Espírito Santo procede do Pai (através do) Filho (gregos) podem perfeitamente dizer a mesma coisa.
O Concílio de Florença em seu Decreto aos Jacobitas (coptas e etíopes) expressou a comunhão entre as divínas Pessoas. Trata-se da pericórese (comunhão trinitária). Entre as divinas Pessoas nada há de anterior, superior, maior, menor e posterior. Elas são co-eternas, co-iguais, co-onipotentes. A razão aduzida pelo Magistério é a unidade da mesma natureza, substância ou essência que está em cada Pessoa. Por causa da única natureza cada uma das Pessoas está toda na outra (circumincessão), penetra e é penetrada pela outra (circumincessão ou pericórese).


II - CRISTOLOGIA

1) A morte de Jesus na cruz: fato histórico e sentido teológico

a) Por que mataram Jesus? As causas históricas de sua morte na cruz

A resposta desta pergunta deve ser buscada na totalidade de sua vida. Jesus foi homem em conflito e, por isso, perseguido até a morte na cruz. A perseguição que acompanhou sua vida despertou nele a consciência de que poderia ser submetido à morte violenta dos profetas, mas manteve-se fiel até o fim. Sua morte, portanto, foi conseqüência de sua prática e de sua vida. Suas causas se deduzem dos dois processos a que foi submetido:
Religioso: passou por dois interrogatórios: o primeiro sobre seus discípulos e sua doutrina (ortodoxia), na casa de Anãs (sumo sacerdote), o qual, não encontrando motivo para condená-lo, enviou-o a Caifás. Na casa deste, foi interrogado sobre sua divindade. Declarou-se Cristo e referiu-se à destruição e substituição do Templo, símbolo da teocracia e centro político, religioso e econômico. Por isso, foi acusado de blasfemar. As divindades e seus mediadores estão em luta: Jesus, o mediador do Reino de Deus, e os sumos-sacerdotes, mediadores da religião configurada no Templo.
Político: fizeram-lhe duas acusações: proíbe pagar imposto a César e diz ser o Messias-Rei. Pilatos não se assusta com a pretensão de Jesus de ser rei e procura livrá-lo da condenação. Entretanto, diante da escolha que é forçado a fazer: soltar Jesus ou ser amigo de César, decide condenar Jesus. Novamente, as divindades entram em confronto: Jesus, mediador do Reino, e Pilatos, mediador do Império. Pilatos foi colocado diante de uma alternativa de fundo religioso que responde à estrutura teologal da realidade: o Deus de Jesus ou os deuses de César.
Jesus foi condenado em nome dos deuses do Estado romano e por ser uma ameaça à paz romana. A Pilatos é atribuída a responsabilidade formal dessa condenação. Em relação à participação das autoridades e do povo, Jon Sobrino acentua a responsabilidade das autoridades religiosas e políticas da época, eximindo a população simples da culpabilidade direta. Jesus morreu por causa da relação conflitiva e antagônica com seus executores.

b) Por que Jesus morreu? O significado teológico e os modelos explicativos do NT.

Por causa de sua fidelidade a Deus e da radicalidade de sua misericórdia para com os seres humanos. Na última ceia, Jesus expressa a certeza e o sentido da entrega de sua vida: seu corpo é entregue “por vós” e seu sangue, “por muitos”, “para o perdão dos pecados, como nova aliança”. Essa certeza e esse sentido evidenciam a compreensão da vida como serviço e da morte como serviço sacrifical. Quanto à possibilidade de Jesus ter interpretado a própria morte como um serviço ao advento do Reino, é algo aberto. Não se pode forçar tal interpretação.
Modelos explicativos do NT:
Depois da ressurreição, os discípulos descobriram progressivamente o significado da cruz. Isso se deu em 3 momentos:
1. O destino de um profeta (1Ts 2,14ss; Rm 11,3): explicação que será retomada pelos evangelhos (Mt 23,37; Mc 12,2ss). Essa argumentação baseia-se na tradição de Israel e dá forças às primeiras comunidades cristãs diante das perseguições. Neste aspecto, mais que uma explicação, os primeiros cristão fazem uma constatação: matam-se os profetas. Porém eles não explicam o significado desta morte para a história. Em se tratando de Jesus, que é mais que um profeta, a pergunta se torna mais desafiadora: por que mataram o messias?
2. A predição das Escrituras: É o que afirma claramente a passagem dos discípulos de Emaús (cf. tb. 1Cor 15,4). Esta constatação se tornou importante argumentação teológica e apologética entre os cristãos provenientes da fé judaica. Entretanto, também essa argumentação não esclarece intrinsecamente a morte do messias na cruz
3. O desígnio determinado e a presciência de Deus (cf. At 2,23; Mc 8,31): A expressão era necessário se converte em termo técnico para esclarecer o significado da cruz de Jesus. A explicação, segundo o próprio Deus, mostra que a cruz não tem nenhum sentido captável diretamente pela razão humana. É possível compreender as razões históricas da cruz, mas é impossível fazer um juízo sobre o porquê da cruz. Se existe alguma razão plausível, ela faz parte do insondável mistério de Deus. Explicar a cruz, apelando para o mistério de Deus, de um lado, denuncia a renúncia dos seres humanos a dar-lhe seu próprio sentido; de outro, mostra que a história não é absurda, que a esperança (gerada e alimentada não no saber acerca do mistério, mas na fé em Deus, na sua infinita bondade) continua possível.

c) Para que Jesus morreu? Modelos teóricos para esclarecer a relação entre cruz e salvação.

Sacrifício: No AT e religiões antigas, o sacrifício tinha a função de superar a distância, de certa forma intransponível, entre o homem pecador e Deus. O ser humano oferece a Deus o que lhe é mais querido, reconhecendo assim a soberania divina. Neste horizonte de compreensão, várias passagens do NT descrevem a figura e a ação de Jesus em linguagem sacrifical (cf. 1Cor 5,7; Ap 5,9; Mc 14,24). Hb, usando a terminologia cúltico-sacrifical, declara abolido todo sacrifício anterior e posterior a Cristo, e usa o sacrifício como modelo teórico para esclarecer o significado salvífico da cruz.
A nova aliança: No AT, a aliança entre Deus e o homem é essencial para a fé e uma das formas mais características para explicar a salvação Da mesma forma que a aliança era selada com o derramamento de sangue, a cruz de Jesus pode ser interpretada como sangue da nova e eterna aliança. Esse quadro referencial da aliança tem por base as narrações, já teologizadas, da última ceia. De um lado, as palavras pronunciadas por Jesus sobre o cálice são interpretadas na linha sacrifical como ação em favor do ser humano; por outro, os sinóticos e 1Cor explicam que o sangue de Jesus derramado produz a nova e definitiva aliança entre Deus/homens.
O servo sofredor: Algumas passagens do NT, que utilizam a imagem veterotestamentária do Servo de Javé foram usadas para explicar a forma como Jesus morreu, mas não explicam o sentido de sua morte. Justo e inocente, Jesus carrega os sofrimentos alheios e se converte em salvação para os outros. Mais do que uma explicação para o significado da cruz, encontramos aqui uma afirmação: existe algo de positivo na cruz de Jesus.
Além desses modelos, Paulo acentua o aspecto da cruz como salvação de três modos: afirmando sua centralidade, pois dela depende a verdadeira fé; mostrando que por meio da cruz o negativo da existência humana se transforma em positivo; e evidenciando que a cruz nos libertou da Lei convertida em maldição. De fato, ela desmascara todos os pressupostos humanos e pecaminosos que não aceitam a revelação do verdadeiro Deus.
Mas, nos autores do NT, não é o sofrimento em si que produz a salvação. Não é pelo fato de ter havido sofrimento que produz a salvação. Desvinculada do sofrimento, a salvação é conseqüência do fato de que Jesus, na totalidade de sua vida – encarnação, missão e morte de cruz –, foi agradável a Deus e, por isso, aceito por ele. Essa afirmação, além de relativizar o sofrimento, mantém a relevância do Jesus histórico para a soteriologia. O sofrimento adquire importância na historização do amor, verdadeira origem da salvação. Deus não se compraz nem exige o sacrifício da cruz de Jesus. Entretanto, o amor acontece no sofrimento em razão das condições humanas da realidade da história. Salvífico é o modo de ser de Jesus (grande amor para com a humanidade), que o NT descreve com múltiplas expressões (“passou fazendo o bem”, “fiel e misericordioso”, veio “párea servir”). Não é apenas o vere home (expressão da verdadeira natureza humana), mas o homo verus (revelação do que nós somos). Por amor e como expressão máxima de sua fidelidade a Deus a aos seres humanos, Jesus aceita a morte na cruz como conseqüência de sua vida, mantendo sua relacionalidade constitutiva: para Deus, é o homem fiel; para o ser humano, o homem serviçal.
A morte de Jesus manifesta sua eficácia por meio da revelação de um modo concreto de enfrentar o mal e de um modo eficaz para salvar e fazer a salvação emergir do mal, e por meio do exemplo de como lidar com o que é contra Deus.
Deus mesmo tomou a iniciativa de tornar-se salvificamente presente em Jesus, e a cruz não é só agradável a Deus, mas sinal por meio do qual Deus mesmo se expressa como agradável aos homens. Não se trata, portanto, de uma causalidade eficiente, mas de uma causalidade simbólica. Assim, a palavra final do NT sobre a cruz de Jesus é que ala expressa o amor de Deus. A linguagem do amor, mais abrangente do que a da redenção e da salvação dos pecados, inclui a ambas. A mensagem definitiva da cruz de Jesus é que Deus se aproximou irrevogavelmente deste mundo, que é um Deus conosco e para nós, tornando-se também Deus à mercê dos homens.

d) A relação entre Deus e o sofrimento, entre a cruz de Jesus e a cruz dos povos crucificados.
Deus diante do sofrimento: para a razão, o sofrimento continua sendo o enigma por excelência, para a fé, embora permaneça enigma, a cruz revela de forma humana que nada na história coloca limites à proximidade de Deus aos seres humanos. Deus participa do sofrimento sem eliminá-lo nem explicá-lo.A grande lição da cruz é que o próprio Deus carrega o sofrimento, e quem aceita, na fé, sua presença na cruz de Jesus deve fazer o mesmo que ele fez.
O sofrimento em Deus: O NT não traz formulações sobre o sofrimento de Deus, mas Paulo diz que ele estava na cruz (cf. 2Cor 5,19) e Mc 15,39 registra a confissão do centurião depois da morte de Jesus. O ponto central dessas afirmações é a constatação de que Deus estava na cruz de Jesus; a cruz, como lugar da revelação de Jesus, é mediação da própria realidade. Vista na perspectiva da índole sacramental, a presença de Deus leva a pensar na revelação de Deus. Deus é testemunha in-ativa e silenciosa das cruzes de Jesus e das vítimas deste mundo. Essa in-ação e esse silêncio são a forma negativa em que a cruz afeta o próprio Deus.
A cruz não é desígnio arbitrário de Deus, nem castigo cruel para Jesus, mas conseqüência da opção primigênia de Deus: a encarnação, o abaixamento radical, a luta em favor do Reino. O Deus crucificado é expressão do Deus solidário. O sofrimento de Deus na cruz é prova de que o Deus que luta contra o sofrimento humano se mostra solidário com os seres humanos que sofrem e de que esta luta também ocorre de maneira humana.
O amor, sendo crível, tem sua própria eficácia. Deus crucificado lembra a todos os que o seguem que não é possível haver libertação do pecado sem carregar-se dele, nem erradicação da injustiça, sem carregar-se dela.
A cruz revela a credibilidade do amor de Deus, revela Deus com base no negativo, não como um único momento revelador, mas junto com outros momentos reveladores, mantendo a revelação de Deus como história de sua revelação. Além disso, aponta para as vítimas como lugar da revelação de Deus.
Algumas atitudes básicas pêra conhecer Deus na cruz: estar disposto a encontrá-lo no positivo e no negativo; considerá-lo como o “Deus maior e Deus menor”; mudar nosso próprio interesse em conhecer Deus; e, sobretudo, permanecer ao pé da cruz e descer dela os crucificados da história.
Por conseguinte, a cruz de Jesus remete às cruzes do povo e vice-versa: a atitude cognoscitiva que permite uma verdadeira analogia entre o fiel e a cruz de Jesus é a dor ante a presença das cruzes históricas.
Na América Latina, existem cruzes de povos inteiros. Portanto, a expressão povo crucificado é útil e necessária do ponto de vista:
- fático-real: a cruz não significa somente pobreza, mas também morte, por causa da pobreza, das repressões, das guerras e da opressão das culturas.
- histórico-ético: a cruz mostra que não se trata de qualquer morte, mas da morte causada pelas estruturas injustas.
- religioso: crucifixão é o tipo de morte de que padeceu Jesus, e para os cristãos ela tem a força de evocar as realidades fundamentais da fé: o pecado, a graça a condenação e a salvação.
- cristológico: os povos crucificados são tanto os que completam na própria carne o que falta à paixão de Cristo como também os que atualizam a presença de Cristo na história.
A cristologização do povo crucificado passa pelo cominho da coincidência do povo crucificado e de Cristo crucificado com a figura do Servo de Javé. Seus traços fundamentais são: a missão salvífica expressa na linha libertadora do AT e apresentada de forma parcial e polêmica, pois se dirige aos oprimidos e se realiza ao abrir os olhos dos cegos e ao libertar os presos e os que vivem nas trevas; ser escolhido para salvar aquele que é desprezado e detestado; ser destruído historicamente pelos homens, sem rosto humano, abandonado, sem que ninguém lhe faça justiça; a causa desse fim são os pecados dos homens; o grande paradoxo e escândalo é que, por meio da morte, vem a salvação; o servo triunfa. Os povos da América Latina reproduzem esses traços fundamentais: são povos sem rosto, privados de toda justiça, tendo seus direitos fundamentais violados, tentam implantar a justiça o direito e lutam por libertação, sabem que foram escolhidos para que a salvação passe por eles e interpretam sua própria opressão como caminho para a libertação.
Da semelhança com o servo, passa-se para a fé em Cristo, na medida em que um povo crucificado concebe e vive sua condição, sua causa e seu destino como seguimento de Cristo. O povo crucificado reproduz os traços de Jesus e é amado privilegiadamente por Deus.



2) O significado da ressurreição de Jesus e sua centralidade para a fé cristã

a) A relação entre cruz e ressurreição
No NT, existe uma total identificação do ressuscitado com o crucificado. A ressurreição é anunciada em unidade com a cruz de Jesus não apenas no sentido de justaposição lógico-cronológica, mas, particularmente, no sentido mutuamente explicativo. A relação entre cruz (realidade histórica) e ressurreição (realidade histórico-escatológica) é decisiva para compreender o mistério pascal e o seu potencial revelador e salvador.
Além de relacionar a morte com a ressurreição, o NT especifica o tipo de morte sofrida por Jesus (de cruz). A intrínseca relação entre os dois momentos da estrutura terrena da vida de Jesus – morte na cruz e ressurreição – fundamenta a afirmação de que os crucificados da história são o lugar teológico privilegiado para compreender a ressurreição de Jesus. Os outros lugares o são à medida que analogicamente reproduzem a realidade da cruz.

b) As dimensões da ressurreição
Escatológica: A ressurreição de Jesus deve ser compreendida na perspectiva da esperança judaica na ressurreição dos mortos. Nessa perspectiva, Paulo vê na ressurreição de Jesus o início da plenitude final: começou a ressurreição dos mortos. Em conseqüência, Jesus é o único mediador-sacerdote (cf. Hb). Outras mediações só têm sentido cristão na medida que apontam para ele. A ressurreição constitui, já para Jesus, a plenitude do Reino de Deus. Para nós, é o fundamento de nossa esperança, que nada tem a ver com alienação ou passividade, mas vivida no oferecimento de si próprio ao Pai e na entrega aos irmãos, como fez Jesus. Este é o caminho que conduz à participação da plenitude do Reino de Deus.
Salvífica: O anúncio libertador do Reino de Deus fundamenta-se na ressurreição. Seu poder salvífico já é uma realidade neste nosso mundo. O novo consiste na libertação para viver na liberdade no amor-serviço. Para Paulo, é: 1º) libertação do pecado, isto é, do fechamento nas próprias obras e na própria segurança (atitude farisaica), da atitude profunda que leva a solidarizar-se com o mal, da causa das transgressões (e que não pode ser superado apenas com a mudança de estruturas). Trata-se do pecado que se encontra na raiz das estruturas desumanizantes e opressoras. Desse pecado somos libertados pela ressurreição de Jesus. Supera-se desse modo a escravidão, sendo possível viver a liberdade para o Pai e os irmãos. 2º) libertação da Lei (legalismo), triunfando a abertura comunitária. O homem é transformado de psíquico (que procura só o próprio interesse) em espiritual (que tende à universalização). Jesus ressuscitado é espírito, vive uma existência radicalmente comunitária e vivificadora. Podemos, por sua ressurreição, viver a experiência comunitária. Quanto mais atuante for a graça do ressuscitado numa comunidade, menos necessária será a lei. 3º) libertação da morte, da angústia paralisante diante de sua ameaça.
Cristológica: Mediante a ressurreição, Deus confirma o valor da vida, das atitudes, das opções, do comportamento, da mensagem e da morte de Jesus. Fica revelada a verdadeira realidade de Jesus e de seu messianismo. É superada e eliminada toda ambigüidade que poderia existir a respeito do sentido de sua vida e de sua morte. Com a ressurreição, acaba a existência segundo a carne e a etapa de serviço, vivida na fragilidade e na ocultação e se inicia a existência segundo o Espírito e a etapa da glorificação. Este novo modo de existência é denominado também pelo NT de exaltação, elevação ou entronização.
Teológica: Na ressurreição, revela-se o poder de Deus sobre a morte, e Deus é revelado como Deus da vida, que vence não apenas o caos, mas também a morte de Jesus, fruto do ma e da injustiça. Esta revelação é inseparável da revelação, na cruz, do Deus solidário. A afirmação de que deus é amor inclui tanto a cruz quanto a ressurreição.
c) Os modelos lingüísticos usados para explicar a realidade e a experiência da ressurreição
Não existe linguagem adequada para expressar a experiência dos apóstolos e a realidade do acontecimento escatológico da ressurreição. Os apóstolos fizeram a experiência do ressuscitado na aparições, apresentadas em descontinuidade com qualquer outra revelação, visão ou vocação. Narraram essa experiência tomando por base realidades análogas, expressa em três modelos lingüísticos:
A vida de Jesus: ele apareceu, está vivo, foi visto. Essa linguagem expressa que a morte e a negatividade não têm a última palavra sobre a história. A última palavra pertence à vida, sobretudo quando se afirma que não só Jesus vive, mas que vive para sempre.
A exaltação de Jesus: ele está sentado à direita do Pai e virá julgar no fim dos tempos. Esta linguagem recorda algo específico do Deus bíblico: transformar a realidade, abaixar os poderosos, elevar os oprimidos e as vítimas.
A ressurreição: Jesus foi elevado por Deus dentre os mortos. Essa linguagem nos faz olhar para a vida histórica de Jesus como ponto de referência: o ressuscitado é o crucificado.
Esbarramos com uma barreira de linguagem, uma realidade limite, de tipo escatológico. Essas formas de expressar o evento escatológico da ressurreição nos levam a pressupor que o que aconteceu a Jesus responde às expectativas do ser humano, pois, caso contrário, nada poderiam ter captado.

d) O significado das aparições de Jesus e o túmulo vazio
A origem e o fundamento da fé na ressurreição encontram-se nas aparições. O termo grego osté (apareceu) é utilizado por Paulo e por Lc para designar as aparições. Este termo tem um significado teológico muito especial. Trata-se de um vocábulo utilizado pela LXX para descrever a revelação de Deus. As aparições do ressuscitado constituem, pois, a revelação de Deus às testemunhas. Deus revela que aquele Jesus, morto, está plenamente vivo. As aparições constituem uma experiência de fé. Mas não é a fé que cria o ressuscitado, e sim a revelação de Deus a respeito do ressuscitado é que constitui a origem e o fundamento da fé. Nesse sentido, aparições nada têm a ver com visões ou sonhos.
O sepulcro vazio não é o fundamento da fé na ressurreição. Ele em si é susceptível a várias interpretações. Os próprios relatos pascais não o apresentam como argumento para fundamentar a fé na ressurreição. Mas, uma vez aceita a realidade da ressurreição, por causa das aparições, o sepulcro vazio passa a ser visto como sinal de que Jesus ressuscitou.


III - ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA

1) O Ser humano, enquanto criatura de Deus é chamado a viver a unidade de suas diversas dimensões.

a) A criação do ser humano segundo Gn 1-2;

Temos duas narrativas da criação que se apresentam em dois relatos diferentes, escritos em época diferentes, com intenção diferente por tradições diferentes. Contudo, os dois relatos apresentam Deus como autor de todas as cosias, que cria única e exclusivamente por amor. A primeira narração vem da tradição Javista. Possivelmente escrita em um contexto agrícola pelo alcança mais vocal. Tem como uma de suas preocupações responder qual seria a preocupação do homem em face da criação, sobre tudo em face da natureza, pois Deus, o criador, havia criado a terra fértil. Para essa tese tem se como possível resposta que Deus quis precisar da colaboração humana para cultivar a terra, produzindo alimento para sustentar a vida. Deus que esta envolvido diretamente na criação, reveste o ser humano de responsabilidade para que seja na terra seu administrador a marca do divino perante todas suas criaturas.
Assim, Deus cria o homem servindo-se de suas próprias mãos e o enriquece com seu espírito que é alento, que saído das entranhas de Deus, constrói e vivifica as entranhas do homem. O homem criado do barro sentiu-se só. Então uma forma simbólica, o Javista relata como Deus tirou uma companheira para o homem, do Aldo do seu coração. Com isto quis dizer que a mulher é companheira do homem, é igual a ele, dispõe-se da mesma dignidade e da mesma responsabilidade diante de Deus. A mulher foi-lhe dada para ser companheira, de tal forma que o homem e a mulher serão uma só carne. O homem não vive mais só, é convidado a conviver com seus semelhantes.
Temos agora o segundo relato da criação oriundo da tradição sacerdotal. A criação do ser humano aparece como obra do sexto dia, ele é criado a imagem e semelhança de Deus, isto é, ele tem a capacidade de escutar e responder a interpelação de Deus, porque é um ser de diálogo e de responsabilidade.

b) A Infiltração dos diversos dualismos;
Percebe-se uma grande difusão do modo dualístico de olhar as realidades do mundo e também sobre a existência humana. Existe essa visão quando o ser humano, para ressaltar um aspecto de sua existência, reflete de modo que desvaloriza uma outra dimensão ou aspecto. Esta concepção leva o ser humano a olhar para a sua realidade de modo fragmentado, ou seja, para acentuar a importância da alma a pessoa despreza a sua dimensão corpórea. Para valorizar a razão, desvaloriza a dimensão afetiva, ou o contrario.
Existem varias correntes filosóficas que desenvolveram esta visão dualista, por exemplo pode ser citado o pensamento da filosofia estóica. De fato as raízes da penetração no cristianismo da visão dicotômica do ser humano encontram-se no Neo-platonismo e no estoicismo. Foram estas duas correntes que influenciaram o cristianismo no que cabe a questão dos dualismos.
No pensamento dualista na religião, há as correntes de reflexão que tendem sempre a separar duas realidades no mundo: o que é sagrado e o que é profano, sendo o sagrado oq eu vem de Deus e o profano o que vem do mundo. A teologia contemporânea vem trabalhando para que seja vencida essa forma de pensar e agir e, está fazendo isto, ao recuperar e reforçar a dimensão da continuidade entre criação e aliança ou criação e salvação. Esta tarefa realmente deve se fazer presente nos dias de hoje na missão e pregação da Igreja, pois ela buscou sempre pregar a unidade do ser humano e contra as separações e divisões dualistas antigas e modernas.
O modo dualista de pensar traz algumas conseqüências, desprezo ao corpo, afetividade reprimida, redução a sexualidade ao nível biológico-genital.
E a visão unitária também tem suas conseqüências, um projeto de libertação integral da pessoa humana depende da visão que se tem do próprio ser humano. A bíblia propõe uma visão unitária do ser humano favorecendo uma libertação integral do mesmo. È preciso superar a mentalidade de oposição/exclusão. A teologia da criação apresenta em unidade as diferentes dimensões do ser humano sem excluir as tensões no dinamismo da historia: dualismo ético x dualismo metafísico.

c) A relação entre corpo e alma na antropologia (nem dualismo nem monismo).
Corpo e alma não devem ser entendidos como se fossem duas partes do ser humano. O ser humano é constituído integralmente de corpo e alma. A antropologia, orientada pelo platonismo e pelo cartesianismo afirma que o ser humano é uma realidade composta de corpo e alma. Na realidade, sua composição não se dá entre corpo e alma; ela só revela seu sentido referindo-se ao corpo humano, pois este sim é, de fato, composto de matéria múltipla organizada e animada pelo principio de informação, ou seja, alma humana. Partindo disto, é impossível conceber a existência do corpo humano sem o principio de “enformação”. Caso falte esta dimensão não haverá corpo humano, mas somente a matéria que se desagrega e desorganiza, ou seja, será um cadáver. O ser humano é uma única realidade, constitui-se das realidades corpo e alma; um único ser pessoal, um único sujeito. Tanto a sua dimensão espiritual, quanto a corpórea designam a realidade e seu ser total. Alma e corpo não são dois seres que se contradizem, antes devem ser considerados como duas notas ou princípios essências e fundamentais “da estrutura ontológica unitária que é o homem”.
Corpo e alma são duas realidades que não se contradizem na constituição humana, porem não se trata de espiritualizar idealisticamente a matéria nem de corporificar materialmente o espirito, mas de conceber espírito e materia “como momentos diversos entre si e referidos reciprocamente de modo indissolúvel, da realidade uma e criada. “o cristão não pode ser se não materialista ao mesmo tempo que espiritualista se é que somente dois termos se afirma que espírito e matéria não designam regiões particulares e justapostas total, mas momentos diversos na sua essência e referidos um ao outro, constitutivos da realidade uma, seja onde e como for que esta se encontre. (RUBIO, 2004).
A pluralidade ou não identidade da alma e corpo consiste justamente na unidade de espírito e materia no homem. “A espiritualidade e a corporeidade do homem tem a sua pluralidade em sua unidade e sua unidade em sua pluralidade” (RUBIO, 2004).

2. “Jesus Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre sua altíssima vocação”. (GS 22).

a). A justa relação entre antropologia e cristologia.
“A cristologia é o inicio e o fim da antropologia” (RHANER). È inicio, uma vez que os homens existem porque o filho de Deus devia existir feito homem. Rhaner afirma que eles não poderiam existir sem a possibilidade da própria encarnação, já que a criação se fundamenta na possibilidade que Deus tem de sair de si mesmo.
Kaspers, refere-se a esta temática, articula a relação entre cristologia e antropologia em 3 pontos: a) “a cristologia pressupõe a antropologia, na medida em que o homem é um sujeito livre, capaz de escutar e de responder. b). pressupõe o homem enquanto capaz de progresso e a cuja essência pertence a novidade; por isso, em cristo, a abertura indeterminada do homem alcança a determinação concreta e indeduzivel. c). a determinação e a realização cristologicas do homem são simultaneamente a crise da autodeterminação que o homem deu a si mesmo com pecador. Por isso, a mensagem da graça é inseparável da do juízo.

c). A criação em Cristo.
A função mediadora de Jesus na criação aparece de modo explicito neste hino de Cl 1, 15,20. Este texto denso e rico em conteúdo teológico constitui o melhor compendio da perspectiva cristocentrica paulina a respeito da Criação. Neste hino Cristo é louvado com a imagem do Deus invisível, isto é, manifesta a presença de Deus em sua esposa. Portanto, ele existia antes de toda criação e é primogênito de toda criatura. Tudo foi criado por ele e para ele, tudo está sujeito a ele e é por seu continuo poder criativo que a criação se mantem. Nada é deixado ao acaso, tudo é apresentado sob o controle de Cristo.
Cristo é o começo. Ele é o ponto de partida da redenção. È o primeiro a experimentar da vida da ressurreição e é, portanto, o primogênito dentre os mortos. Mais uma vez, ele ocupa o primeiro lugar em tudo, ao mesmo tempo que aprouve a Deus fazer habitar toda plenitude, reconciliar tudo por meio Dele e para Ele. Ao apresentar Cristo como cabeça do corpo que é a Igreja, o autor coloca a dimensão de que ele é o líder de todo o universo.

c). O paralelismo entre Adão e Cristo .
O forte paralelismo que pode ser percebido entre Adão e Cristo é o seguinte: o evento de Cristo não determina apenas a essência aberta do homem, mas faz ver que esta essência está desde o começo aberta ao destino de salvação inaugurada por Cristo. Seguindo o ensinamento Paulino de 1Cor 15,49, uniu o tema do segundo Adão ao da origem. Se a verdadeira imagem de Deus é Cristo, o primeiro Adão não pode não relacionar-se com Ele uma vez que foi criado á imagem e semelhança de Deus. È o que viram os teólogos dos primeiros séculos do cristianismo, que por um lado não ficaram satisfeitos coma idéia filosófica do homem e, por outro, leram conjuntamente o primeiro e segundo testamento para descobrir nos dois o pano do único Deus. Não pode ser deixada de lado a idéia de que a passagem do primeiro Adão terrestre ao segundo celeste, Cristo, não se faz cem a cruz. Junto com a novidade de Cristo e com a unicidade do plano divino, é preciso não perder a vista que o novo Adão pressupõe o aparecimento do homem novo, em contra posição com o velho, marcado pelo pecado.

IV- TEOLOGIA DA GRAÇA

1) A Graça, enquanto oferta que Deus faz de si mesmo ao ser humano deve ser compreendida dentro do seu eterno projeto de amor.
Compreende-se que a Graça não é algo distinto de Deus, não é algo sobrenatural desconexo a Ele, mas é, em sua essência, o próprio Deus que Se entrega ao ser humano, não de modo isolado, mas universal: todos os homens têm acesso a esta Graça, em virtude do desígnio divino de salvação.

a) A eleição em Cristo
A experiência da “Autocomunicação Divina” mostra ao homem o quanto está endereçado a Deus, que é a causa de toda a sua existência. Deste modo, conclui-se que quem aceita a sua transcendentalidade natural em direção ao mistério e se lhe entrega sem dúvidas, medo ou reservas, admite Deus, mesmo que não O conheça da maneira objetiva.
Entende-se que, neste seu intento de revelação ao gênero humano, num primeiro momento, Deus aliena-Se ao colocar-Se para fora de Si mesmo, a fim de fazer-Se conhecer por um ser distinto de Si. Esse momento da revelação divina se dá precisamente no ato da encarnação, em que se vê a mais perfeita “Autocomunicação de Deus” a uma criatura, na qual está intimamente presente a liberdade de Deus.
O Verbo de Deus que Se fez homem, não Se encarna no mundo com o único objetivo de fazer-Se mediador de fato da Graça através dos seus méritos, uma vez que o Pecado causou a ruptura no contato humano com a Graça Divina.
A salvação trazida por Jesus só é, de fato, entendida, na perspectiva da eleição, que sugere duas dimensões: protológica e escatológica. A primeira se refere ao fato de que o gesto salvífico de Deus não se deveu a um acaso, nem à vontade humana, mas toda a iniciativa e prioridade cabem à vontade salvífica de Deus, expressando-se assim, que tudo parte da vontade de Deus em acolher o ser humano em Cristo. Ao criar o ser humano em Cristo, Deus quis destiná-lo a viver sua própria vida trinitária. Por­tanto, para que o querer divino seja verdadeiro deve essa destinação apresentar algum efeito em nós. Esse efeito nos é dado desde nossa criação, não podendo ser pensado como algo posteriormente acrescentado ao que já éramos.
Com isso, a concepção unitária decorre da própria noção de criação. Por um lado, essa noção nos diz que somos, em nossa realidade, totalmente dependentes de Deus, somos criados do nada, como tradicionalmente se diz. Por outro lado, Deus nos cria para participarmos de sua vida, e isso não é algo que Ele nos impõe, mas sim, algo que profundamente nos afeta. A finalidade última da criação do ser humano é acolher a autocomunicação de Deus.

b) O ser humano diante do dinamismo do apelo ao Reino
A Graça de Deus está intimamente voltada para o “concreto-concretíssimo” (Leonardo Boff) da existência de cada pessoa. Estando a pessoa imersa em seu ambiente cultural, histórico e social, ela acaba sempre emergindo como individualidade irredutível, sendo, cada um, uma totalização do universo, com um sentido absoluto em si mesmo. Nesta perspectiva, cada um vive a sua própria experiência da Graça, a partir da qual se vê a sua resposta ao Mistério do Amor.
Neste horizonte, o mundo acaba sendo o lugar privilegiado para a experiência de Deus, lugar onde o ser humano está e chega à profunda conclusão de que sua existência está projetada para além dos limites terrenos. A esse respeito, Leonardo Boff apresenta uma reflexão:
O mundo é intimamente imbuído e penetrado pela Graça de Deus, uma vez que o Amor divino jamais abandona o seu desígnio de “Autocomunicar-Se”, mesmo mediante a possibilidade de recusa humana a esta “Autocomunicação” e o Pecado. Deus está sempre presente de forma plena no mundo e esse, da mesma forma, sempre presente de modo pleno em Deus.
Ainda que, por vezes, o mundo e o homem não deixem que a presença de Deus transpareça fenomenologicamente, mesmo assim, ali Ele estará, pois os obstáculos não destroem a presença de Deus, embora impeçam que ela Se historize no mundo, dificultando, assim, a experiência da Graça.
O ser humano traz em si esta destinação a Deus, o que lhe é dado como possibilidade. Contudo, permanece ainda a questão de fundo que deu lugar a toda essa reflexão. Como conciliar a ordenação intrínseca do ser humano para o Reino (Cristo, graça, visão) e a gratuidade total desta graça? A primeira afirmação não destrói a segunda? Se é uma determinação intrínseca ao ser humano, então, nada mais tem de gratuita, já que todo homem deve ser criado com ela, como nasce dotado de inteligência e liberdade.
Devemos concordar que essa determinação (destinação ao Reino), que afeta e modifica a realidade do ser humano, não pode pertencer à sua natureza, como pertencem suas faculdades de inteligência, liberdade, imagi­nação, memória etc. Pois, nesse caso, estaria destruída a gratuidade do chama­do ao Reino de Deus.
Mas a situação em que se encontra o ser humano, chamado a acolher o Reino, a saber, o próprio Deus como dom (autocomunicacão divina), consti­tui uma detenninação existencial de sua realidade concreta, embora não seja um elemento constitutivo de sua natureza.
Admite-se que na ordem histórica, que é a única que se conhece e experimenta, todo ser humano está sob o dinamismo do convite de Deus, que precede toda e qualquer decisão livre de sua parte. Nunca se pode experimentar a natureza desprovida desse dinamismo para o Reino.

c) A concepção unitária de natureza e Graça.
O conceito de natureza aparece assim como um conceito ­reto, de contornos imprecisos, pois em minha experiência concreta já atua o existencial crístico, sem que eu possa delimitar claramente o que compete à natureza e o que atribuir ao dinamismo para o Reino.
Sobre a concepção unitária divergem os teólogos quanto à necessidade de se recorrer ao conceito hipotético de natureza pura. Karl Rahner acha-o legítimo, já que mantém aberta a possibilidade de existir uma natureza huma­na não destinada ao Reino. Caso contrário, argumenta ele, reduziríamos essa destinação a um elemento constitutivo do ser humano, destruindo assim sua gratuidade. Já Henri de Lubac crê manter a gratuidade sem empregar esse conceito. E argumenta assim: só conhecemos a natureza humana concreta, histórica, dotada de uma finalidade sobrenatural; a outra não passa de uma hipótese.
Todo e qualquer ser humano, por ter sido criado em Cristo, está intrinsecamente afetado pela graça, está constantemente sob o apelo de Deus, está sempre sob o dinamismo da atração divina. Do ponto de vista teológico, não sociológico ou cultural, não existe o âmbito do natural, do profano, do salvificamente neutro. Em qualquer setor da existên­cia e da atividade humana estou vivendo minha resposta ou minha recusa a Deus, que transcendem enunciados ou práticas religiosas. Pois o que é decisivo, no que concerne à minha salvação, é acolher livremente este Deus que vem gratuitamente ao meu encontro na minha vida familiar, profissional, cultural, afetiva, religiosa, de lazer etc. Essa teologia foi assumida claramente pelo Concílio Vaticano II (CS 34).
Desse modo, devemos distinguir a ordem salvífíca da ordem institucional. A primeira é mais abrangente do que a segunda, que se refere ao cristianismo como grandeza histórica, à Igreja e ao que ela oferece como os sacramentos, a pregação da Palavra de Deus, a doutrina, as demais práticas religiosas. A primeira diz respeito ao Reino de Deus, que ultrapassa os limites das institui­ções e se torna realidade também fora delas. A identidade do cristão não pode fugir dos desafios em que se debatem a sociedade e a história, pois só participando deles responde a Deus. Porque acolher o Reino implica também socie­dade justa e construção da história, segundo os desígnios de Deus revelados na pessoa de Jesus Cristo. Igualmente as espiritualidades e as pastorais deveriam ser examinadas à luz do que vimos.
A Graça não anula nem dispensa a responsabilidade humana. Podemos vê-la como parceria, uma aliança de amor entre Deus e o povo, em que cada parte tem o seu papel a cumprir, com implicações mútuas. Isso pressupõe a liberdade, o compromisso e a fidelidade de ambas as partes. Mas a iniciativa é sempre de Deus. O ser humano está sempre sendo chamado por Deus a colaborar com o seu plano de amor.

2) A evolução histórica do pensamento teológico sobre a graça está condicionada pela dinâmica da bipolaridade: homem/Deus, natural/sobrenatural, liberdade/dependência, luta histórica/Reino de Deus.

a) A perspectiva grega e latina na concepção da graça;
Grega: Para a teologia grega, a graça é entendida dentro de uma perspectiva histórico e situada concretamente, mas que ao mesmo tempo extrapola este contexto. É o já e o ainda não. Para os gregos, criação e redenção são vistos de maneira unitária. A graça é unitária e a tudo abarca. A graça consiste num acontecer já e agora da graça de Deus, ou seja, da presença de Deus no homem.
Esta presença da graça no homem é tão marcante que consiste na divinização deste em Jesus Cristo. Não é Deus que se abaixa e entra no humano, mas é o homem que é elevado por Deus a abandonar sua situação e entrar no mundo divino. Deus eleva o homem e o introduz para dentro da esfera do divino. Assim pé que expressa Santo Irineu: “Deus se tornou homem a fim de que o homem se tornasse Deus”. Em Jesus o homem é divinizado, isto sem que este deixe de ser humano. A divinização aqui se dá quando o ser humano se torna plenamente humano.
Latina: Já a teologia latina incorporou a presença da graça mais na perspectiva de libertação do pecado e da corrupção da natureza humana.
Graça consiste na justificação do homem de seus pecados para, a partir daí, ser divinizado. A teologia latina pensa a graça como forma de modificar o ser humano, isto operada pela presença justificadora e amorosa de Deus. De um ser pecador, o homem pode, pela graça, voltar a ser homem de verdade para em seguida ser deificado. Vale dizer, plenificado em sua humanidade (Boff, 2003, p.23).

b) O confronto entre Pelágio e Agostinho;
Pelagianismo: Segundo a doutrina de Pelágio, conhecida como pelagianismo, Deus não realiza nenhuma intervenção na obra da salvação do ser humano.
O papel de Jesus Cristo se reduz exclusivamente ao “exemplo” e ao “mistério”. Devido a exagerada confiança na força da vontade humana, Pelágio chegou a esta definição.
Para Pelágio não existiu o pecado original como algo que deixou a humanidade inclinada para o mal; assim sendo o homem por si só é capaz de manter-se sem pecado e de praticar o bem.
Esta concepção de Pelágio deve-se a sua luta contra o maniqueísmo, este com sua doutrina dualista de “bem e mal”. Pelágio neste confronto acaba por se posicionar no outro extremo, não mais vê o pecado de Adão como fonte de todos os males, mas apenas como um mal exemplo dado.
Podemos explicitar o pensamento de Pelágio em algumas teses: 1) Adão teria morrido mesmo sem o pecado; 2) o pecado de Adão prejudicou a ele só; 3) Não foi concedida nenhuma graça especial aos primeiros pais; 4) A queda de Adão não acarretou a morte para os homens como a Ressurreição de Jesus Cristo não é causa da Ressurreição dos demais homens; 5) As crianças conseguem a vida eterna mesmo sem o batismo; 6) A lei de Moisés leva à salvação tanto quanto o Evangelho; 7) houve homens sem pecado antes de Cristo.
Cartago 418 condena a doutrina de Pelágio e afirma a radical necessidade da graça de Deus para a salvação. Esta é dada não somente para fazer o bem, mas sim como presença do próprio Deus no ser humano.
Santo Agostinho
Para combater o pelagianismo, Santo Agostinho afirmou o primado da graça e da ação de Deus na salvação do homem.
Daí surge o problema com os semipelagianos, estes não negam a necessidade da graça de Deus para a salvação, mas tal qual afirma santo Agostinho eles acham que é excessivo. Isto certamente em decorrência da doutrina da predestinação de Santo Agostinho, segundo a qual apenas alguns homens são libertos do contingente dos condenados no qual a humanidade se encontra por ocasião do pecado.
Os semipelagianos acreditam que o homem não pode se salvar sem a graça que Deus lhes dá, porém para que esta seja concedida ao homem é necessário que ele a busque (exemplo de Zaqueu).
O initium fidei pertence ao homem enquanto primeiro movimento ao encontro de Deus. Todos os homens possuem a mesma oportunidade diante de Deus, basta que este dê o primeiro passo ao encontro de Deus, depois Deus realizará a salvação por sua graça.
Assim a doutrina semipelagiana acaba por eliminar a iniciada divina (biblicamente diz-se o contrário: cf. Jô 6,44 “atrairei todos a mim...”). O concílio de Orange em 529 afirma que tudo de bom que existe no homem procede da graça divina ab initio fidei (do início da fé). Pois a graça de Deus é tão grande que Ele chega ao ponto de querer que seus dons sejam nossos méritos.

c) A justificação na Reforma e no Concílio de Trento;
Justificação é um conceito usado para falar da relação correta entre Deus e o homem. Quem justifica é sempre Deus, porque é Ele que se identifica com a justiça e a perfeição (Cf. Rm 5,5). A graça tem seu real efeito em nós e suscita nossa livre cooperação. No contexto da justificação não se pode nunca afirmar Deus como prejuízo do homem e nem o contrário. A Justificação é a remissão dos pecados, a santificação e a renovação do homem interior. Ocorre no homem um novo modo de ser e não só de agir.
Somente em virtude da graça de Deus é que se dá o início da justificação e a própria justificação, exclui-se qualquer precedente mérito por parte do homem (Primado da Graça).
A afirmação da liberdade do homem, da cooperação com a graça na preparação para a justificação e da transformação do justificado (o justificado é justo realmente, e não somente considerado como tal), para a doutrina católica, não são obstáculos para o primado da graça, mas, conseqüências da graça.
Para Trento, a fé não une inteiramente o homem a Cristo se ela não for acompanhada pela esperança e pela caridade (Gl 5,6). O objetivo da justificação é introduzir o justificado na filiação divina.
O homem não pode salvar-se (ser justificado) pelas suas obras, pelo seu livre arbítrio, e nem somente pela “fé” sem obras. O homem não pode, sem o auxílio de Deus, crer, esperar e amar ou arrepender-se como convém para ser justificado. O livre arbítrio do homem pode cooperar para que o ser humano se prepare e se disponha a receber a graça da justificação. As boas obras conservam e aumentam a justiça recebida.
A Justificação nos foi merecida pela Paixão de Cristo; ela é a maior obra do amor de Deus (CIC n. 1992-1994); ela estabelece a colaboração entre Deus (graça) e o homem (liberdade) (CIC n. 1993). A Justificação é ao mesmo tempo acolhimento da justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo (CIC 1991).
A justificação foi uma constante que afligiu os alicerces da doutrina da Igreja. A justificação pela graça ganhou debate mais acirrado a partir do século XVI com a reforma e contra-reforma.
A doutrina da justificação encontra acentos distintos nas teologias católica e protestante. Para a primeira o acento é colocado mais no ser humano (justificação subjetiva), para a segunda o acento é colocado mais em Deus e a sua ação justificadora (justificação objetiva). Isto levou a controvérsias acirradas e de certa forma hoje superas.
É muito interessante esta questão controversa envolvendo Lutero e Trento. Lutero afirma que o homem por si só é impossibilitado de fazer o bem, só Cristo o reconcilia com Deus livrando-o: da morte, do pecado e do diabo.
Refletindo a questão dentro de uma perspectiva de combate a Lutero, Trento afirma que, em conseqüência do pecado de Adão, o homem perdeu a amizade com Deus. Seu livre arbítrio está enfraquecido, mas não extinto. Mesmo debilitado, a liberdade que lhe resta sob o impulso da graça é que torna possível o processo de justificação. A graça toca o coração do homem e fá-lo desejar ir ao encontro de Deus. Trento realça a necessidade da fé para a justificação, esta leva a conversão interior em que faz o homem se reconhecer pecador e abrir-se a esperança e esta o levará ao amor.
No decorrer da história bem como nos dias atuais o termo justificação é pauta obrigatória quando o tema é ecumenismo. Também merece menção os relevantes avanços nesta questão. A declaração conjunta sobre a doutrina da justificação envolvendo a Igreja Católica Romana e a Federação Luterana Mundial.
Também vale lembrar as condenações doutrinais das acusações mútuas do tempo da reforma realizada pela: EKD = Igreja Evangélica da Alemanha e DBK= Conferência alemã dos bispos, que estabeleceu o seguinte: a) graça não acrescenta ao esforço humano, mas o capacita ao primeiro passo em direção à salvação, b) a pessoa justificada pelo batismo precisa lutar a vida inteira contra a tendência de contrariedade a Deus, c) necessidade da graça para a salvação, d) justificação interior e exterior, e) somente fé; as boas obras, cooperação humana são sempre respostas, f) certeza da salvação: fé não quer dizer estar na própria segurança, mas apostar exclusivamente em Deus, g) mérito: compreendido como um presente dado ao ser humano.
Assim o termo justificação foi causa de muitas discussões no passado e continua sendo na atualidade, principalmente em escala institucional. As brigas do passado se tornaram hoje numa constante luta e esforço de ambos os lados por superá-las. Pois embora seja um termo importante teologicamente, constitui em algo de pouca relevância em termos práticos.
Uma reflexão nova que se faz é a da questão da justificação dentro da perspectiva latino-americana. Um realidade marcada por um grande contingente de excluídos e carentes de justiça, para estes a justiça deve incidir na vida concreta onde estão inseridos. Os excluídos são chamados a tomar consciência de que são sujeitos históricos e a justiça é “direito” de todos e ao mesmo tempo “dever” de todos que devem lutar por ela. Assim a justificação no cenário latino-americano precisa ser algo que dê esperanças e liberte-os neste que vivem neste contexto.

d) Baianismo e Jansenismo.
Baianismo: Para Baio (1513-1589) a natureza humana foi totalmente corrompida pelo pecado de Adão. O homem não é mais capaz de realizar o bem por si só, como também não pode resistir à graça de Deus. Todas as obras do ser humano pecador, inclusive as obras justas, são pecado, pois permanecem marcadas pela concupiscência e por isso não podem absolutamente levar a Deus.
Baio não dá importância à graça santificante, pois para ele o que Deus premia não é o ser do homem (criatura), mas o seu operar conforme Deus. É somente por meio do Espírito que se pode fazer o bem.
A doutrina de Baio foi condenada por Pio V (1567) e Gregório XIII (1579) como sendo herética e escandalosa ou suspeita.
Jansenismo: Jansênio defende o baianismo em sua obra “Augustinus” (1640). Ele defende acima de tudo o primado da graça.
O jansenismo afirma que o homem faz sempre e somente aquilo que lhe agrada. Fará assim o mal ou o bem de acordo com a atração de concupiscência ou de Deus.
Quando a graça age, o homem é livre não porque tenha liberdade de escolha, mas porque age espontaneamente movido por uma necessidade interior. Após o pecado, a concupiscência é tão forte que somente a graça de Cristo estando nele pode fazê-lo agir conforme Deus. O homem está sempre sujeito a um determinismo interior, o da graça ou do pecado.
A doutrina de Jansênio aproxima-se de Calvino ao afirmar que Cristo não morreu por todos, mas somente por alguns.
Urbano V (1653) proibiu a leitura de “Augustinus” (1642) e Inocêncio X condena a doutrina jansenista como herética.

V - ECLESIOLOGIA

1) A Igreja, ícone da Trindade

A)As raízes trinitárias da Igreja
A concepção de igreja predominante na teologia católica anterior ao Concílio Vat. II caracterizava-se por aquilo que Ives Congar descreve como “cristomonismo”. A expressão evidencia a atenção privilegiada que se dispensava aos aspectos visíveis, encarnacionistas da Igreja em detrimento da dimensão mistérico-sacramental, segundo a qual o visivel é evocado, sinal e instrumento de uma realidade invisível mais ampla e fecunda. O primeiro capitulo da LG representa o resgate da profundidade trinitária da Igreja: De unitate Patris et Filii et Spiritus Sancti plebs adunata (São Cipriano). A Igreja provém da Trindade, é estruturada à imagem da tindade e ruma para o acabamento trinitário da história. Vinda do alto, plasmada pelo alto e rumo ao alto, a Igreja não se reduz ás coordenadas da hist´roa, do visível e do disponível. A Igreja vem da Trindade: o universal desigino salvífico do pai (LG 2) a missão do Filho de (LG 3) a obra santificante do Espírito (LG 4) edificam a Igreja como mistério , obra divina no tempo dos homens , preparada desde a origem (Ecclesia ab Abel), reunida pela Palavra encarnada. A Igreja é ícone da Trindade, por “não-medíocre analogia, ela é comparada ao mistério do Verbo encarnadao (LG 8), na dialética do visível e do invisível, ao mesmo tempo em que a sua comunhão, uma na diversidade das Igrejas locais, dos seus carismas e ministérios, reflete a comunhão trinitária (LG II-IV). A Igreja orienta-se para a Trindade, é Igreja dos peregrinos na conversão e reforma contínuas, em comunhão com a Igreja celeste, preparando-se desde já para a glória final (LG VII, VIII.

B) A relação entre a fonte trinitária da Igreja e o dinamismo da comunidade eclesial
O fato da Igreja ser a comunhão dos crentes , a reunião dos crentes é uma forma usual em todas as épocas da história da teologia. Tornou-se novamente consciência do caráter da Igreja como comunhão na Igreja no Concílio Vaticano II, depois de ter passado para o segundo plano desde a Idade Média, em conseqüência de outras caracterizações. Juntamente ao longo do surgimento da constituição eclesial passa cada vez mais para o primeiro plano, a idéia de que a Igreja é essencialmente a comunhão de fé, esperança e amor unificada pelo Espírito de Deus. Esta nova forma de sociedade, da formação de comunhão, que a Igreja cristã em sua essência é, está profundamente ligada em primeiro lugar com a experiência religiosa fundamental do cristão, com sua experiência trinitária de Deus. Por isso a constituição eclesiástica do Concílio Vaticano II começa com uma visão explicitamente tirnitária da Igreja, a qual ela sintetiza da seguinte maneira, baseando-se em concepções patristicas: Assim toda a Igreja se apresenta como o povo unificado a partir da unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo (LG 4). Por isso a natureza comunitária da fé só recebe caracterização teológica adequada se for entendida também como Povo de Deus, como Corpo de Cristo e como Templo do Espírito Santo (AG 7). Entretanto essa nova forma de comunhão ainda está relacionada, em segundo lugar, com as experiências de socialidade e com as formações de socialidade na sociedade e política da humanidade. Formas, estruturas e instituições da Igreja não caíram simplesmente do céu, mas são também resultado de experiências históricas e de ação histórica. As diversas formas de comunhão eclesial por isso se desenvolvem no contexto de formas existentes de comunhão, da família e do pequeno grupo (Igreja doméstica), dos lugares e cidades (comunidade local), das unidades políticas regionais e suapra-regionais que são as províncias, estados, nações e continentes.

C) As implicações ecumênicas do fundamento trinitário da Igreja.
O século XX, viu o nascer de momentos e estruturas de encontro e confronto entre as igrejas. O cansativo diálogo ecumênico, inicialmente se desenvolveu em torno de questões teológicas, soteriológicas e antropológicas, depois, progressivamente, passou para o primeiro plano as dificuldades relacionadas com a eclesiologia. O confronto entre as diversas configurações confessionais deixou claro que a questão mais espinhosa é no fundo, a do significado da igreja diante do mistério da salvação, isto é, sobre sua sacramentalidade e sobre as formas de mediação. Por outro lado, também um tratado crítico sobre sua estrutura e sobre os elementos necessários para que exista aí uma igreja. O desafio que hoje deve ser enfrentado, porém, é o de precisar uma metodologia adequada e correta que permita estabelecer uma eclesiologia que possa ser chamada de ecumênica, à medida que for capaz de explicar o ser e a razão do sujeito eclesial. Uma eclesiologia que leve a sério as instâncias ecumênicas e que valorize os diferentes percursos de fé vividos pelos cristãos não pode deixar de considerar e enfrentar a pergunta eclesiológica fundamental, o que é a igreja e por que existe. Trata-se, antes de tudo, de reconhecer o fundamento trinitário, a orientação na direção do Reino de Deus. Uma eclesiologia que não assuma essa responsabilidade ecumênica não pode ser apresentada como uma reflexão cristã coerente e realista., sem estar na luz da dimensão mistérica e do horizonte trinitário do plano de Deus.

2) A Igreja, sacramento de comunhão:

De acordo com o Concílio Vaticano II a Igreja se define como sacramento (LG 1,9,59; SC 5,26; GS 42; AG 5). Trata-se sem dúvida da mais significativa descrição da Igreja. Esse conceito tem um significado básico de comunhão com Deus, da qual se participa por meio da Palavra e dos sacramentos. Esse tipo de comunhão é que leva à comunhão dos cristãos entre si e se realiza concretamente na communio da Igrejas locais fundadas mediante a eucaristia. Chega-se assim ao termo técnico de communio, conceito e realidade fundamental da Igreja antiga, muito apreciada pelas Igrejas orientais, tendo, por isso mesmo, um papel especial no decreto a respeito dessas Igrejas (OE 13) e no decreto sobre o ecumenismo (UR 14s).
Mas o nível eminentemente estrutural da communio foi definido no lócus theologicus principal dessa noção conciliar, a forma eclesiológica de LG 23a, que diz: “E os bispos individualmente são o princípio visível e o fundamento da unidade em suas Igrejas particulares, formadas à imagem da Igreja universal, nas quais e pelas quais existe a Igreja católica una e única”. Esse retorno à eclesiologia da communio do primeiro milênio por parte do concílio coexiste com a eclesiologia jurídica da unidade mais típica do segundo milênio e bem explicitada na expressão communio hierarchica (LG 22), com o qual se liga o ministério episcopal à Igreja universal, concretamente com o papa e o colégio episcopal. O sínodo extraordinário de 1985, afirmando a centralidade desse conceito no concílio, sublinhou que “a eclesiologia de comunhão não pode ser reduzida a meras questões organizacionais ou a problemas que concernem unicamente à questões de poder. Todavia, a eclesiologia de comunhão é também fundamento para a ordem na Igreja e sobretudo para uma correta relação entre unidade e pluriformidade na Igreja” (C.1, EV 9,1800). Esta questão acarreta importantes conseqüências práticas para a vida sinodal da Igreja: colegialidade, sínodo dos bispos, conferências episcopais etc.

a) Igreja universal e Igreja particular
O passo decisivo, pelo qual a compreensão de Igreja e do ministério do segundo milênio retornou ao horizonte do conceito bíblico-patrístico de Igreja, sendo com isso novamente interpretado, está em que, na constituição sobre a Igreja, finalmente o plural “as Igrejas” recebe de novo direito teológico de cidadania dentro da Igreja católica e do ecúmeno. Com efeito, continua a estar claramente em primeiro plano, visto a partir da apreciação que se faz de fato, o singular “a Igreja” como expressão para a única e abrangente ekklesia de Deus (LG 1,2). Isso, porém, não impede que na visão fundamental dessa Constituição as Igrejas locais e as Igrejas particulares tenham o mesmo mérito teológico que a Igreja universal. As mais importantes afirmações a respeito encontram-se no contexto da colegialidade episcopal novamente formulada: “Nas Igrejas singulares e a partir delas existe a Igreja católica una e única” (LG 23). “Esta Igreja de Cristo está verdadeiramente presente em todas as legítimas comunidades locais de fiéis, que, unidas com seus pastores, são também elas no Novo Testamento chamadas ‘Igrejas’” (LG 26). “A diocese... unida a seu pastor e por ela congregada no Espírito Santo mediante o Evangelho e a Eucaristia constitui uma Igreja particular na qual verdadeiramente está e opera a una, santa, católica e apostólica Igreja de Cristo” (CD 11).
A Igreja universal não é a união (posterior) de comunidades locais ou pessoais inteiramente “subsistentes” em si mesmas; não é também a totalidade sistêmica social (anterior) que se divide em diversas partes (subsistemas) à maneira de “compartimentos” de uma “superdiocese” mundial. Ambos os lados não são dedutíveis nem redutíveis entre si; ambos carregam em si o valor e o conteúdo originais de Igreja. Estes se fazem valer, portanto, somente na relação recíproca, de forma que, de um lado, a Igreja universal se constitui “nas” Igrejas locais e “a partir” delas (LG 23), “existe” somente nelas (como singulares e em conjunto) (LG 26), e, de outro lado, as Igrejas singulares realizam o seu ser-Igreja apenas na unidade comunicativa de todas as Igrejas (ou seja, estando entre si na comunhão da fé e da eucaristia). Nas Igrejas particulares, ligadas entre si, reflete-se a única Igreja como sua unidade comunicativa; e ao mesmo tempo refletem-se nessa unidade as Igrejas singulares como sua diferenciada auto-realização. Precisamente isto quer dizer a dupla idéia “nelas e a partir delas” em LG 23; “nelas” significa: a única Igreja realiza-se somente na pluralidade das Igrejas individuais, “a partir delas” quer dizer: só a unidade e a totalidade das Igrejas individuais forma a única Igreja.
Na perspectiva da eclesiologia eucarística, não existem, portanto, partes ou porções de Igreja. O único Corpo eclesial de Cristo está presente em plenitude em cada uma das comunidades eucarísticas locais, que são a Igreja, realizada em tempos e lugares determinados.
Ainda do ponto de vista antropológico, a Igreja se põe originariamente como Igreja local, lugar de encontro da realidade da salvação oferecida em Cristo e uma situação concreta, com todas as características naturais, sociais, culturais que a definem. Por isso, desde as origens, a Igreja existe apenas concretamente, como a Igreja de Deus que está em Corinto, em Antioquia, em Roma...

b) O bispo de Roma e o Colégio episcopal
No sentido da teologia da communio da Igreja antiga, o carisma fundamental da Igreja romana e do seu bispo, que repousa no martírio de Pedro e de Paulo, está em ser testemunha, garante o ponto de referência da fé apostólica. A característica decisiva do ofício de Pedro não é um poder jurisdicional de comando para a Tradição mais antiga, mas o seu serviço autorizado como “vigia” e “memória viva” da tradição da fé.
Entre todas as Igrejas e comunidades eclesiais, a Igreja Católica está consciente de ter conservado o ministério do Sucessor do apóstolo Pedro, o bispo de Roma, constituído como “perpétuo e visível fundamento da unidade” (LG 23).
O Vaticano II situa o ministério petrino novamente relacionado a Mt 16,18s e Jo 21,15-17, no quadro da apostolicidade e portanto de uma significativa relação entre o colégio espiscopal e o seu chefe (LG 22b). Essa eclesiologia afirma que a Igreja é essencialmente comunhão de Igrejas locais presididas pelos bispos, que constituem o colégio espiscopal ao qual se tem acesso “pela sagração sacramental e pela hierárquica comunhão com o chefe e os membros do colégio” (LG 22a). Foi ele que herdou do colégio dos apóstolos a responsabilidade e o governo pastoral da Igreja universal (LG 20), competindo ao Papa ser o chefe do colégio espiscopal e agir como tal, levando-se em conta que, “em seu múnus de Vigário de Cristo e Pastor de toda a Igreja, possui na Igreja poder pleno, supremo e universal. E ele pode sempre livremente exercer esse seu poder” (LG 22b).
Partindo dessas afirmações, a articulação entre o exercício do primado do ministério petrino e a comunhão das Igrejas locais nas suas manifestações sinodais (concílios, sínodos, conferências episcopais...) abre-se para um contínuo aprofundamento. Tudo isso a partir da eclesiologia da comunhão, que é o eixo de sustentação do Vaticano II e do próprio primado apostólico do ministério petrino no Vaticano I, dado que se afirma que sua finalidade fundamental é conservar a Igreja “na unidade da fé e da comunhão, [por isso] colocou à frente dos outros apóstolos o bem-aventurado Pedro e nele fixou o princípio perpétuo e o fundamento visível da unidade de ambos” (DS 3051).
Cabe ao bispo de Roma assegurar a comunhão de todas as Igrejas. Neste sentido, ele é o primeiro entre os servidores da unidade. Primado que é exercido na vigilância da transmissão da Palavra, da celebração sacramental e litúrgica, da missão e da vida cristã. É ao sucessor de Pedro que compete a recordação das exigências do bem comum da Igreja, advertir e declarar inconciliável com a unidade da fé uma opinião qualquer que se difunde. Este serviço da unidade pertence, originariamente, ao colégio dos bispos, no qual o bispo de Roma é “cabeça”. A função do bispo de Roma é também a de vigiar como uma sentinela, de modo que, em todas as Igrejas particulares, através de seus pastores, ressoe a única voz de Cristo-Pastor. O bispo de Roma conserva, deste modo, a unidade de todas as Igrejas particulares na Igreja Católica e Apostólica. Portanto, com o colégio de bispos, o bispo de Roma afirma a comunhão da Igreja. A preocupação do primado é manter a unidade de todas as Comunidades cristãs.
Sobre o colégio episcopal, K.Rahner afirma: “A totalidade dos bispos e a autoridade dessa totalidade não é a soma posterior dos bispos individuais e de suas autoridades; mas, enquanto unidade jurídico-moral, fundada sacramentalmente e sustentada pelo Espírito de Deus, e essa unidade abrangente precede (objetivamente) ao bispo individual...” A ordenação sempre insere o indivíduo nesse colégio, de sorte que sua autoridade episcopal que se lhe concede pessoalmente pela ordenação compete-lhe, ao mesmo tempo, somente como membro desse colégio. Dentro do colégio episcopal, que representa a “pluralidade e a universalidade do povo de Deus”, o bispo de Roma corporifica uma vez mais – como elemento interno constitutivo – a unidade da Igreja e do colégio. Existe, pois, igual-originariamente na Igreja a forma colegial e a primacial do poder supremo; ambos só podem ser exercidos um com o outro.
Assim como, conforme o testemunho do Novo Testamento, Pedro não foi constituído como Pastor por Jesus fora do colégio apostólico, assim também o Papa não pode exercer na Igreja o seu serviço à unidade fora ou acima do colégio episcopal.
A “cabeça” sem o colégio ou fora do colégio é tão contraditória teologicamente quanto o colégio sem sua “cabeça”. Neste sentido K.Rahner diz que: “o único sujeito colegial do poder supremo na Igreja tem, portanto (correspondendo à sua estrutura interna), dois modos de agir: por meio do papa sozinho, como sua cabeça primacial e por um ‘ato colegial própria e estritamente dito’” [um Concílio, um sínodo de bispos, um aconselhamento ou acordo de bispos no mundo].

c) O ministério petrino e o diálogo ecumênico
O título de petrina pertence à Igreja por dois motivos. Primeiro, porque Pedro está entre seus fundadores. Segundo, porque o encargo que Jesus confiou a Pedro no seio da primeira comunidade cristã não é a título pessoal, destinado a esgotar-se com sua pessoa, mas um encargo estável, permanente, destinado a renovar-se constantemente através dos séculos, enquanto a Igreja conservar uma imagem visível. Ao contrário, é causa de grande dissídio entre os cristãos a qualificação de petrina dada à Igreja com base no segundo motivo, isto é, a renovação constante, em todas as épocas da história da Igreja, do cargo de Pedro – com todos os carismas que ele comporta – em um sucessor. Esta tese sempre foi contestada pelos ortodoxos e pelos protestantes.
O modelo do serviço à unidade de Pedro poderia valer analogamente também para a unidade com as Igrejas da Ortodoxia e da Reforma. Assim como de seu lado cresce de novo de várias formas uma nova compreensão para uma sensata possibilidade de um ofício de Pedro renovado teológica e praticamente, assim também do lado católico se deveria deixar claro ainda mais decisiva empenhativamente que, para colimar uma unidade ecumênica da Igreja, são teologicamente possíveis diversos modos de reconhecimento deste ofício de Pedro, e da comunidade em communio com ele. Pois o ofício do “primaz” da Igreja latina em sua concreta conformação jurídica não é de maneira alguma idêntico ao ofício da unidade eclesial-universal, embora ambos os ofícios coincidam no bispo de Roma. W. Kasper, a este respeito diz que: “Uma unidade ecumênica futura maior da Igreja não precisa absolutamente ser lida segundo o modelo de unidade atualmente vigente dentro da Igreja Católica. Todas as tradições confessionais podem contribuir com suas riquezas para uma futura unidade ecumênica da Igreja. Se vejo corretamente, então as aproximações ecumênicas e os textos de convergência são uma espécie de evento pré-conciliar. Eles devem tornar aptas para o concílio as Igrejas separadas, isto é, colocá-las numa situação na qual elas se reúnam (...) num Concílio ecumênico, no sentido abrangente da palavra, com a finalidade de assumir uma comunidade eclesial conciliar em comunhão com o ofício de Pedro. Tal comunidade conciliar de Igrejas é no presente a única meta pensável dos esforços ecumênicos”.




d) Igreja como sacramento na história e no mundo

Se a noção de comunhão diz a identidade da Igreja, a de “sacramento de comunhão” exprime a autocompreensão da Igreja em relação à sua missão no mundo. O Vaticano II declara que a Igreja é, em Cristo, como que o sacramento, isto é, sinal e instrumento da comunhão entre si. Esta fórmula exprime a dupla posição da Igreja: por um lado, a Igreja não está diante da sociedade, mas na sociedade; por outro, ela é, para a sociedade, sinal e instrumento do Reino de Deus e de sua vinda.
Embora não com esta formulação, que é recente, o tema da Igreja-sacramento está presente no Novo Testamento e na patrística. Essa formulação, porém, é tributária dos estudos teológicos vindos à luz antes do Concílio. No prólogo da Lumen gentium, reflete-se esse sentimento: a Igreja é um mistério que reflete o próprio mistério de Deus em Cristo e no Espírito Santo; por isso, ela é sinal e instrumento de salvação; no momento presente, ela se sente chamada a realizar sua missão num mundo a caminho de sua unificação; consequentemente, deve atuar de tal modo que essa unidade realize-se mediante a íntima união da humanidade com Deus em Cristo. As duas primeiras palavras da constituição dogmática evidenciam a tríplice preocupação da Igreja em concílio: fidelidade à própria identidade colhida a partir de Cristo (perspectiva cristológica); fidelidade aos seres humanos, a cujo serviço se coloca (perspectiva antropológica); fidelidade ao encontro das duas fidelidades anteriores no mistério da aliança, a Igreja (perspectiva eclesiológico-sacramental). A profunda conexão das três perspectivas refletida no texto, segundo Bruno Forte, “mostra como a fidelidade à própria identidade em Cristo e a preocupação com a própria relevância histórica a serviço dos homens e das mulheres não são alternativas nem separáveis, mas caminham juntas numa Igreja que, para ser presença salvífica do seu senhor no meio de seu povo, deve ser lugar da aliança (foederis arca), totalmente fiel ao céu e, ao mesmo tempo, totalmente fiel à terra, totalmente de Cristo e, ao mesmo tempo, totalmente para os seres humanos.
A sacramentalidade da Igreja visa ao dom salvífico da comunhão, comunhão ao mesmo tempo vertical (íntima comunhão com o Pai, pelo Filho, no Espírito Santo) e horizontal (unidade do gênero humano). A salvação, como se vê, é positivamente qualificada como “comunhão”. Naturalmente, na visão conciliar, a Igreja não é a única nem exclusiva promotora de comunhão na história. Para ser sinal e instrumento, ela é chamada a inserir-se humilde e ativamente dentro da humanidade, onde, graças à presença e à força do Espírito, já estão em ação outros dinamismos de unificação, que necessitam de um contributo que os abra à plenitude (a unidade em Cristo), embora nem sempre o reclamem e por vezes o recusem.

VI – SACRAMENTOS
1 “Os sacramentos são ações simbólicas celebradas pela Igreja e instituídos por Jesus Cristo”

a) “Tudo o que move é sagrado”: a compreensão sacramental a partir do mistério encarnatório;
“Quanto mais deixamos que as coisas entrem em nossa vida, tanto mais elas manifestam sua sacramentalidade.” Sacramento como aponta L. Boff, é aquela realidade que nos remete a um algo mais, ou seja, que vai além de uma realidade em si plena de sentido e significado. Desta forma, pode-se dizer que toda realidade que alude a este “algo mais” seja sacramento, ampliando assim, nossa própria compreensão sacramental. Daí a canção versar: “Tudo o que move é sagrado”. Nossa compreensão sacramental, é totalmente iluminada pelo mistério da encarnação do Verbo; Jesus Cristo (o Sacramento-Fonte) é quem, por meio da Igreja (Sacramento-Raiz), nos qualifica a dizer que tudo o que move é sagrado. Na perspectiva do mistério da Encarnação, do divino tocar o humano, pode-se dizer que o humano por meio dos sacramentos pode fazer uma profunda experiência de Deus, que sempre lhe aparece como Mistério tão absoluto e tão radical que se anuncia em tudo, tudo penetra e tudo resplende. Assim para o homem, tudo é sacramento ou pode tornar-se sacramento deixando de ser coisa, passando a ser sinal, símbolo. Sacramento que comporta a dimensão da saudade, ou seja, à ausência de algo que o coração deseja, porque ama, mas que está longe no momento. Logo, Sacramento é nossa resposta a essa saudade que sentimos, esse desejo de estar perto de alguém que sempre é presente em nossa vida. Deus, marcou seu encontro com o ser humano em todas as coisas, nelas se pode encontrá-lo. Jesus de Nazaré, com sua vida, com seus gestos de bondade, sua morte corajosa e sua gloriosa ressurreição, é chamado Sacramento por excelência. Cristo é o lugar do encontro por excelência: n’Ele Deus está de forma humana e o homem de forma Divina.

b) Jesus Cristo é o Sacramento do Pai e a Igreja é o Sacramento do Filho
Jesus como Sacramento-Fonte, tem-se que por meio dele o Deus invisível se tornou visível entre os homens e mulheres. Em Jesus, o divino humanado, é possível experimentar a pessoalidade de Deus, isto é Jesus é aquele que explica e mostra quem é o Pai, através de sua vida, morte e ressurreição, uma doação de vida que dá conteúdo as palavras e sinais, que explicam e atualizam a doação que significa o cumprimento da vontade do Pai. Bem com os gestos de Jesus, como expressão do advento definitivo de Deus, na proposta e a instauração do Reino de amor e justiça, são comunicadores de salvação. Por conseguinte, Jesus Cristo, o Sacramento-Fonte, é conhecido na Igreja e pela Igreja, como o Sacramento-raiz. È no Sacramento-Raiz que se encontram os relatos, os testemunhos e sobretudo a identidade de Jesus.Desta forma, não existe outro modo de se conhecer Jesus Cristo, senão, por meio da Igreja. Ela é em Cristo, como que instrumento e sinal da íntima união com Deus e na unidade de todo gênero humano. Sendo sacramento a Igreja assume uma dupla função: ser elemento visível e , ao mesmo tempo, fator operativo e comunicativo da Salvação. Assim, do Sacramento-fonte, nasce o Sacramento-Raiz e deste, nascem os sacramentos como eventos de graça para a vida dos fiéis.

c) A crise da vivência dos sacramentos e a crise dos símbolos
Nem sempre se consegue traduzir com a nossa linguagem, aos interlocutores contemporâneos, as verdades de fé sustentadas pela Tradição. Ao detectar os motivos para tal “crise” na vivência dos sacramentos, além da linguagem utilizada frente a um contexto por vezes operacional, virtual, rápido e automatizado. Deve-se perceber também que há uma “crise” dos símbolos na sociedade contemporânea, afetando por assim dizer a realidade dos sacramentos. Não que se tenha perdido por completo a dimensão simbólica, mas que se faz necessário resgatar urgentemente tal dimensão da vida humana. Desta maneira, também faz-se necessário re-fontizar os sacramentos, pois, são eles eixos fundamentais da vida humana, esta manifestada e celebrada de forma comunitária.

2 - A EUCARISTIA É A FONTE E ÁPICE DA IGREJA

A) Eucaristia: ceia memorial e sacrifício
A Igreja vida da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contem em síntese o próprio núcleo da Igreja. a eucaristia é a fonte e ápice da vida da Igreja, de toda a vida Cristã, pois por meio dela oferece-se a Deus a vítima divina e com ela a si mesma (LG 11). Desde as origens das comunidades cristãs a Eucaristia ocupa lugar central na vida da Igreja. Ao se reunirem, para celebrar a Eucaristia, as comunidades cristãs colocam em prática o mandato deixando pelo Senhor Jesus naquela Ceia derradeira que fez com seus discípulos: “Fazei isto e memória de mim”. Sendo assim, todas as vezes que a comunidade cristã se reúne em torno da mesa do altar cumpre aquilo que São Paulo ensina a comunidade de Corinto: “ Todas as vezes que comerdes desde pão e beberdes desde cálice anunciais a morte do Senhor até que ele venha” (Cor 11,26). Com este ensinamento Paulo deixa claro à comunidade de Corinto e às comunidades futuras, a íntima ligação existente entre a participação na Eucaristia com o mistério Redentor do Cristo Jesus. Participar da ceia eucarística é, pois, participar da ceia em que os convivas atualizam de forma memorial. Isto é, fazem memória do sacrifício de Jesus, aquele que Jesus sofreu na cruz como cordeiro imolado pelos pecados da humanidade.
Desta forma a eucaristia se apresenta em sua tripla dimensão: ceia memorial e sacrifício. Estas três dimensões trazem consigo todo significado da eucaristia para a vivência e caminhada espiritual das comunidades cristãs, tanto as de ontem como as de hoje. A Eucaristia é a Ceia do Senhor: as comunidades se reúnem em torno da mesa do sacrifício para partilharem os dons do pão e do vinho. Com este gesto ritual e sacramental atualiza-se a memória da entrega de Jesus na cruz: como vitima inocente, como cordeiro imolado pelos nossos pecados. Contudo, não se trata apenas de uma ceia de caráter sacrifical. E Eucaristia é ceia memorial, pois faz memória do mistério pascal de Cristo. E Jesus celebra sua última refeição como memorial. Por isto, celebrar e participas da Eucaristia, é fazer memória da paixão, morte e ressurreição do senhor.

B) Eucaristia: antecipação escatológica do Reino definitivo
Outro fator interessante da eucaristia é que é como que a antecipação escatológica do Reino definitivo. Assim, a Eucaristia não é outra coisa, senão a celebração antecipada do grande projeto de Deus sobre a humanidade: família dos filhos e irmãos que se reúne para celebrar o gozo do que são. Sabe-se que Jesus não era “obcecado” pelo sagrado, pois sua grande preocupação era a pessoa humana. Por isto se coloca junto (entra em comunhão) com os marginalizados. Uma das formas encontradas por Jesus é colocar-se à mesa com eles, para tomar a refeição. Assim, pode-se dizer que as refeições de Jesus, bem como a Eucaristia (ápice, coroação destas refeições) está intimamente ligada à mensagem do Reino de Deus que Jesus veio inaugurar. O evangelista Lucas, insiste nesta dinâmica, pois, para Jesus o Reino é mesa partilhada, porque quer reforçar os laços de fraternidade, de solidariedade e de comunhão entre as pessoas. A eucaristia é mesa compartilhada. A mesa compartilhada, por sua vez, é um dos melhores símbolos para expressar a verdade central do Reino de Deus. Daí a imagem preferida de Jesus para representar o reino de deus ser a de ceia e a comunhão de mesa, a festa compartilhada. Desta forma, o ato de comer juntos é, sobretudo, um gesto de amizade, de aceitação e de comunhão, por meio do qual, não somente se oferece alimentos, mas também, de certo modo, oferecer-se a di próprio. E Jesus na eucaristia “não apenas fala do Reino na forma de comida, mas Ele próprio como e suas refeições são a melhor parábola, uma parábola em ação”.

C) Se a Eucaristia é fonte e ápice da vida eclesial, o que dizer das comunidades que são privadas de sua celebração devido a carência de ministros ordenados?
Como o tudo o que já foi dito e afirmado: a proposição da eucaristia como fonte e ápice da vida eclesial ganha sentido e razão de ser. Contudo, é fato que grande parte das comunidades cristãs católicas estão privadas desta celebração a devido a falta de ministro ordenados. Se se leva em consideração que estas comunidades têm a possibilidade de celebrarem a Palavra com a distribuição de Eucaristia, elas não estão categoricamente privadas da comunhão do sacramento fonte e ápice da vida eclesial. Pois, nestas celebrações estão presentes três fatores fundamentais para celebração da vivência eclesial: a comunidade reunida em assembléia, a Palavra ( que é proclamada, refletida e feita oração), e a Eucaristia ( que é distribuída em alimento). O que ocorre muito hoje é uma desvalorização deste modo de celebração. É obvio que seria bom se todas as comunidades pudessem ter sempre a celebração da eucaristia. Porém, é errônea a idéia que perpassa de que a celebração da Palavra seja menor importância que a Celebração da Eucaristia. Ora, o mesmo Cristo que se faz presente na assembléia reunida, na palavra proclamada, refletida e rezada e na Eucaristia dada em alimento na celebração eucarística. É o mesmo Cristo presente na assembléia reunida na palavra proclamada, refletida e reza da e na Eucaristia dada em alimento na celebração da Palavra com distribuição da Eucaristia. Por isto, frente a esta carência de ministros ordenados há que se trabalhar para que se dê mais valor e dignidade a atuação dos ministros leigos que com esforço e dedicação presidem estas celebrações.


VII – ESCATOLOGIA
1) “O destino dos homens e mulheres é a felicidade eterna com Deus”
A escatologia trata dos fins últimos ou novíssimos (Eclo 7,40) (morte-juízo-inferno-paraíso). Dividi-se em duas partes as quais se estudam os fins últimos de cada um dos homens, ou os da humanidade inteira ou do cosmo. Considerando do ponto de vista da redução, as últimas coisas chama-se a perfeição ou consumação da economia redentora.
Esta felicidade eterna muitas vezes foi e ainda é equiparada ao Paraíso. Quem se encontra no estado de Paraíso goza plenamente das Bem-aventuranças de Deus. O Papa Bento XII declarou que as almas dos bem-aventurados estão no céu onde contemplam a essência divina que se lhes mostra imediatamente, sem véu, clara e abertamente e são por isso, realmente felizes (DH 530).

a) Deus oferece as condições, mas não obriga a pessoa a decidir-se por Ele
Na morte o homem reconhece todo seu ser, e neste conhecimento pleno ele percebe e reconhece sua limitação, assumindo que lhe falta algo para completar àquilo que Deus tinha proposto como projeto para ele. Esta consciência é dinâmica, ela não acontece somente no plano individual. Assim o ser humano encontra na morte Aquele que durante sua vida na terra nunca condenou ninguém, ao contrário, chamava-se a si próprio de Bom Pastor.
O encontro com Deus revela-se então como aquele ‘momento’ no qual o ser humano descobre, de modo radical, a sua dependência inevitável de Deus. Com esta visão é possível dizer que na morte Deus quer plenificar o homem todo, por isso oferece possibilidades de graça. Deus pela sua imensurável misericórdia oferece ao ser humano aquilo que lhe faltou, e este na sua liberdade pode ou não aceitar. Não há culpa e condenação que não estejam acompanhadas de uma oferta de graça e perdão. O Deus de Jesus Cristo é sempre e principalmente o Pai que vai procurar o que se perdera, não o juiz implacável que acharia alegria em condenar alguém.
Aceitar, porém, esta Graça não é tão fácil como se poderia imaginar, porque implica a superação de tudo o que existe de orgulho e de egoísta na personalidade deste homem. Exige a transformação desta personalidade no sentido de tornar-se pobre em todas as dimensões de seu ser; exige entrega incondicional a Deus, aceitando a sua própria nulidade e jogando toda a esperança Nele.

b) A ressurreição de Jesus é a base da esperança escatológica
A esperança cristã não está perdida no espaço. Mas tem sua base e confiança depositada na lealdade de um Deus, o qual faz viver os mortos e chama à existência as coisas que não existem. Deu provas de sua lealdade na ressurreição daquele que não abandonou a confiança nele depositada, nem mesmo quando preso na cruz , naquela forca abominável da antiguidade.
Esta fé, porém, é sustentada e assegurada pelo testemunho da ressurreição de Jesus. O que antecipou em Jesus, Deus fará com todos os seres humanos. Esta é a convicção de em que São Paulo se baseia (1 Cor 15,12-22). Paulo responde à cética pergunta que o corpo seria esse, ele responde com a figura da simples semente que é transformada na forma de trigo, e com diversas outras comparações para ilustrar, assim como lá existem formas muito diferentes e, não obstante, há identidade, assim também haverá, depois da ressurreição, uma corporalidade totalmente distinta da atual e, não obstante, idêntica com ela.
Com isso, a ressurreição de Jesus torna-se sinal de esperança para todos os homens que, marcados pelas disputas e lutas desta vida, desesperadamente indagam, em face da morte, qual o sentido de todos seus esforços. Pela ressurreição, Deus aceita a luta de Jesus e ao mesmo tempo abre aos homens uma perspectiva de futuro, onde as barreiras que impedem a integral libertação já terão a última palavra.

c) a “vita beata” tem início na história e culmina na trans-história
Deus ao criar os seres humanos dispõe para cada um determinado projeto de vida. Tal projeto não inclui somente o indivíduo em questão, mas tudo que o circunda. E o projeto final de Deus para os seres humanos é este: que eles tenham vida e que tenham vida em plenitude”. A vida humana é a própria base da salvação. Essa vida, porém é um processo que começa no momento da concepção (história). E sendo a salvação ligada a este processo, também o processo da salvação pessoal de casa ser humano inicia-se naquele exato momento. É no decorrer desta existência que Deus, junto com a pessoa humana e com o consentimento dela realiza a salvação dessa pessoa.
A vita beata depende do modo com a vida é vivida. Ávida precisa ser pautada pela comunhão com outras pessoas e com o cosmo. A vita beata deve ser uma dinâmica profunda, dentro da qual o indivíduo se encontra com outras pessoas e aí o amor será pleno e festivo. Pode acontecer que pessoas consigam viver a vida plena “aqui na terra” alcançando o projeto que Deus tinha para ela, neste sentido a Igreja reconhece sua beatitude, caso não consiga, esta pessoa, com seu sim, será plenificada por Deus e passará ou entrará numa vita beata. Calo que há muitas pessoas que alcançam a vita beata mas não são reconhecidos pela Igreja.

2) “NO MOMENTO DA MORTE-MORTE TODAS AS DIMENSÕES ANTROPOLÓGICAS FALECEM”

a)Como conciliar esta tese com a crença tradicional na imortalidade da alma?
Na crença tradicional, na morte, a alma se separa do corpo e entra numa nova dimensão, chamada ETERNIDADE. Nesta nova dimensão, a alma da pessoa está sendo JULGADA por Deus no assim chamado JUÍZO PARTICULAR. Conforme o resultado deste juízo, a alma ou entra diretamente no inferno, ou, depois de ter passado talvez certo tempo no purgatório, entra no céu. Ela aguarda, numa situação de felicidade ou tormento, a chegada do JUÍZO FINAL. Quando o momento deste segundo juízo chegar, acontecerá também a RESSURREIÇÃO DO CORPO e, de novo conforme o resultado dos julgamentos, a alma humana, agora reunida com o seu corpo, passará para toda a eternidade numa situação de felicidade total, chamada CÉU, ou de tormento inimaginável, chamado INFERNO. De acordo com a nova concepção, o modelo antropológico dualista foi superado pela compreensão do ser humano multidimensional (em unidade global). Esta nova concepção não fere o dogma, pois o conteúdo da fé é o mesmo, O QUE MUDA É A SUA CHAVE HERMENÊUTICA (modo de expressar o conteúdo da fé). Afinal, a compreensão antropológica da morte estava sob um modelo (visto condicionalmente por fatores históricos), sendo que este não é um dogma infalível, mas pode ser revisto de acordo com os conhecimentos filosóficos e científicos. Vê-se agora que não existe separação entre corpo e alma, pois MORRE A PESSOA TODA E NO MOMENTO DA MORTE JÁ ACONTECE A RESSURREIÇÃO DE TODA A PESSOA. Esta, na morte, entra em nova dimensão atemporal, chamada eternidade, que é quando acontece o final dos tempos (no momento da morte).

b) À luz da nova cosmologia, como argumentar as questões inerentes às categorias espácio-temporais, e ao mesmo tempo, salvaguardar o “depositum fidei”?
A nova cosmologia afirma que o mundo vai ter um fim, pois é um processo natural (físico) da evolução do cosmo; com o fim da matéria, cessam-se as categorias de espaço e tempo, logicamente. É possível o encontro da energia psíquica humana com a consciência absoluta, transcendente e pessoal de Deus. A transformação do cosmo é processo progressivo e dialético da criação e não holocausto catastrófico. Na eternidade só existe o “agora” e, portanto, na morte a pessoa já alcança, num único passo atemporal, aquele ponto onde o cosmo inteiro chega ao seu fim. Para as dimensões ligadas ao vector de espaço-tempo, porém, tal ponto se atinge depois de uma imensa sucessão de momentos, anos, milênios, até que o cosmo inteiro chegue ao final de sua história. É aquele ponto, que Deus definiu para o universo como limite final do processo histórico. As histórias individuais de todos os seres humanos coincidirão com a história das estruturas deste mundo e também com a história do cosmo um todo. A história inteira, com todas as estruturas construídas, será avaliada a partir dos critérios de Deus, que são os critérios de Jesus ressuscitado, daquele Jesus que é revelado para todos como Filho de Deus, e esta é a sua Glória. Quando o cosmo chegar ao seu fim último, se realizará a parusia.

c) Fora das realidades espácio-temporais é possível algum tipo de mudança? Como argumentar a experiência do “purgatório”?
Mesmo após a morte não haver tempo e espaço, é possível mudança, pois Deus oferece a oportunidade de uma definitiva conversão, onde o homem poderá reconhecer sua culpa individual e estrutural, aceitando ou não o amor-perdão de Deus “que quer que todos se salvem” (1Tm 2,4); para o homem este é um ato doloroso que exige superação do orgulho e egoísmo. O purgatório é o momento (e não duração em um lugar) da última evolução do homem; é processo de purificação e transformação, onde o homem não pode fazer mais nada, é pobre e depende totalmente de Deus, sua atitude será a de confiança incondicional no amor de Deus. O processo de purgatório se apresenta como a grande resposta de esperança, formulada pela fé cristã. Perspectiva nova e fascinante, cuja originalidade supera em muito a resposta apresentada pelas doutrinas reencarnacionistas.

TEOLOGIA MORAL

I – MORAL FUNDAMENTAL

1) A Teologia Moral nos vinte séculos de cristianismo: desdobramentos

A) O conteúdo moral na patrística:
Sobre a moral na época patrística pode-se considerar quatro momentos:
- Padres Apostólicos (séc. I e II): Como pastores, impunham suas idéias em pregações e catequeses ocasionais. Seus ensinamentos referem-se à vivência da fé e seu método faz grande recurso às escrituras – decálogos, evangelhos e, especialmente, o sermão da montanha. O aspecto ético de seus ensinamentos se expressa nos critérios ou normas de vivência, como a imitação de Jesus e a imagem dos “dois caminhos” – o caminho da vivência da fé e o caminho da impiedade pagã. Pode-se dizer que desenvolvem uma teologia moral especificamente religioso-cristã, com toda sua dimensão de espiritualidade.
- Padres Apologistas (séc. II): São os grandes defensores do Cristianismo. O argumento de defesa consiste em contrapor a excelência moral da doutrina cristã e da vida dos cristãos à permissividade e dissolução moral do paganismo romano. A doutrina moral não se encontra sistematizada com autonomia, mas dentro do contexto de exposição da doutrina cristã.
- Inculturação do Cristianismo na cultura grego romana: (séc. III): A grande preocupação dos Santos Padres, era encontrar o modo de articular as orientações morais cristãs, elaboradas no contexto da vivência da fé, com o discurso ético da filosofia grega. Dos resultados da influência da cultura grega na tradição cristã, dois se destacam: em primeiro lugar, para a sistematização do pensamento moral, os padres acolheram o conceito de “lei natural”, além de muitos princípios e normas das grandes correntes filosóficas vigentes, principalmente do platonismo e do estoicismo. Em segundo lugar, destacamos a influência do pensamento dualista sobre a visão negativa da corporeidade, em especial da sexualidade no pensamento cristão. Neste período, a moral ganha certa autonomia em relação a dogmática. Surge a obra considerada como primeiro tratado de moral cristã: “o pedagogo” de Clemente de Alexandria.
- O apogeu da Patrística (séc. IV até o fim da Patrística): Com o fim da repressão do Cristianismo e a partir da sua adoção como religião oficial do império o pensamento cristão ganha mais espaço cultural e prestigio social. Florecem grandes talentos intelectuais cristãos. Dentre os temas morais concretos, tem lugar de destaque a questão da honestidade cristã da riqueza e de seu uso na relação entre ricos e pobres. o processo de inculturação do pensamento cristão na filosofia foi aprofundado, especialmente por Santo Ambrósio e Santo Agostinho. Agostinho é considerado o criador da teologia moral com certa autonomia no conjunto da teologia cristã. Segundo ele, a reflexão teológico-moral visa descobrir qual é o fim ultimo ao qual tende a nossa vida; e esse fim é Deus. As demais coisas devem ser usadas como meio para atingir o fim último. O mal moral consiste em inverter o fim e os meios. Também afirma que o desafio ético consiste em adequar o comportamento humano com a vontade de Deus. Como ponto frágil do pensamento agostiniano encontra-se a concepção negativa da sexualidade e do matrimônio, herdada da filosofia maniqueísta.

A contribuição moral de Santo Tomás de Aquino:
Sobre o conteúdo moral em Santo Tomás de Aquino pode-se considerar a segunda parte da Suma Teológica: o movimento da criatura racional para Deus. Para Tomas, o ser humano, sujeito do ato moral, é imagem de Deus, dotado de inteligência racional e liberdade para se auto-determinar responsavelmente, assim a realização do ser humano consiste em assemelhar-se a Deus, imitando o modelo que nos foi dado, Jesus Cristo. A relação do homem com Deus, seu princípio e fim, explica-se pela categoria da "participação". Criado à imagem de Deus, nele está impressa a lei natural que o homem conhece e discerne por sua inteligên­cia racional. Isso constitui sua "na­tureza". Além disso, pela graça, o homem possui o dom do Espírito, que o torna capaz de reali­zar sua vocação para Deus. Por sua consciência, que é participação no conheci­mento de Deus, o homem pode conhecer a lei natu­ral e, pela iluminação da fé, tem o conhecimento da vontade de Deus revelada. Decidindo-se, com sua liberdade responsável e com a ajuda do Espírito, a seguir essa norma que o aproxima de Deus, o homem se auto-realiza.
Seu pensamento moral tem as seguintes características:
- Realiza uma união coerente e harmônica entre o aspecto racional e o teológico, entre razão e revelação, entre vida humana e vivência de fé cristã.
- Mesmo que a parte moral esteja inserida coerentemente num complexo unitário da teologia, ela tem uma estrutura e sistemática própria. Apresenta-se, pois, com certa autonomia como tratado de moral, ao lado da teologia dogmática.
- Sua teologia é antropológica, porque parte do ser humano entendido como projeto de realização enquanto imagem de Deus. Ela é teleológica, pois define a moralidade a partir do ordenamento da vida ao seu fim último. Por fim, é uma moral de autonomia, porque o homem não recebe a norma ou a lei de fora, descobrindo em si mesmo a lei eterna pela participação nela. Ela ainda é uma moral racional, tendo-se inspirado em grande parte na ética de Nicômaco de Aristóteles, de quem Santo Tomás tomou muitas categorias e conceitos, principalmente o método filosófico-teológico e científico.

b) A moral casuística e sua influência na mentalidade religiosa e moral dos cristãos
No final da Idade Média, a prática da penitên­cia privada já estava consolidada em toda a Igre­ja da Europa. Isto passou a reclamar um auxílio da reflexão teológica. A resposta foi a chamada "moral dos manuais" ou "moral casuística". Destinava-se à preparação de confesso­res, e passou a dominar o ensino da teologia moral nos seminários.
Os manualistas procedem pelo método deduti­vo: a partir dos princípios gerais, determinam a mo­ralidade das situações concretas. São minuciosíssimos na descrição e determinação da obrigação moral da pessoa em todo tipo de situações concretas imaginá­veis - os "casos". Daí o nome de "moral casuísta" ou '''casuística''. Nessa análise de "casos" ou situações concretas manifesta-se uma preocupação acentuada de ressaltar as obrigações morais e a possibilidade de cometer pecados, bem como de determinar em deta­lhes a espécie e a gravidade dos pecados. É fraca a fundamentação bíblica e dogmática.
A moral, sobretudo a de orientação casuística, desenvolveu muito os temas dos “impedimentos” dos atos humanos. Distinguiam-se duas classes de impedimentos:
- os próximos, que podem afetar o elemento cognoscitivo (ignorância), o elemento volitivo (concupiscência, medo, costume enraigado), o elemento executivo (violência exterior), a todo ato (sugestão, hipnotismo);
- os remotos, entre os quais se colocam fatores tanto patológicos (enfermidades mentais) como não patológicos (caráter, idade).
Com a moral casuística a teologia moral se desemboca na luta entre laxistas e rigoristas, entre probabilistas e probabilioristas. Uma pessoa não pode agir ou tomar uma decisão quando sente uma incerteza sobre qual é seu dever moral nessa situação concreta. Então surge o princípio do probabilismo: em caso de dúvida sobre se determina­da lei é aplicável em determinada situação concreta, é lícito seguir uma opinião provável, mesmo que uma opinião contrária seja igualmente provável ou até mais provável. Ampliando esse princípio, alguns autores defen­deram um sistema chamado laxismo: nas questões controvertidas pode-se seguir qualquer opinião que tenha um mínimo de probabilidade. Diante disso, outro grupo passou-se então, a propor o probabiliorismo: em caso de dúvida sobre a obrigação da lei, em princípio deve seguir-se a pres­crição da lei, salvo em caso de a opinião contrária a vigência ou obrigatoriedade da lei ser notavelmente mais provável. Uma solução para a controvérsia foi proposta por santo Afonso de Ligório, com o sistema chamado de equiprobabilismo: como ponto de partida, admite o princípio probabilista de que a lei duvidosa não obri­ga, mas, uma lei só pode ser qualificada ver­dadeiramente de duvidosa quando as opiniões a favor ou contra ela contam com um grau de probabilidade sensivelmente igual.
A moral casuística apresenta grandes lacunas que influenciaram negativamente na vida moral dos cristãos:
- a desvinculação da Sagrada escritura e da Teologia Dogmática (cristologia, eclesiologia, teologia sacramental);
- seu excessivo legalismo, destacando a importância dada à obrigação, ao dever, à obediência, e lei positiva, sobretudo a eclesiástica;
- sua desvinculação com a filosofia, não havendo diálogo nem confronto;
- sua excessiva vinculação com a práxis penitencial, sendo os seus manuais feitos diretamente para os confessores.
Esta moral casuística se estende até o Concílio Vaticano II. Este Concílio forneceu grande contribuição para a renovação da moral. Os seus documentos, embora diretamente não sejam documentos de índole moral, são contributos valiosos neste campo. Realçou-se a importância da Lumen Gentium para a compreensão de uma moral de sinal eclesial; a importância da Dei Verbum no sentido de uma fundamentação bíblica da moral; a importância da Sacrossanctum Concilium ao tom mistérico e sacramental de todo o comportamento cristão. Mas onde mais aparece a dimensão moral do Concílio é na Gaudium et Spes, na qual se estudam temas concretos da vida e do comportamento dos cristãos.
Assim, a moral passa de um tom casuístico para um tom personalista. A moral passa a ser uma moral da autonomia e da responsabilidade, que situa a pessoa no centro do sistema ético. A moral passa a ser uma moral do diálogo e para o homem secular, diferente da moral casuística que era intra-eclesial.

c) Influência da Antropologia unitária na Teologia Moral
A moral pós-conciliar coloca a teologia moral na linha do personalismo, ou seja, valoriza a participação pessoal nas decisões do comportamento moral. Coloca como primeira e fundamental estrutura da moral o fato do sujeito da ação moral ser o ser humano integral.
Existiu, e ainda perdura em alguns ambientes, a idéia de um homem formado ou composto de duas realidades mais ou menos inter-atuantes, mas no fundo, distintas e separadas: alma e corpo. Esta dicotomia ou dua­lismo se enraizou profundamente na compreensão cristã do homem. Diante dessa concepção dicotômica do homem, é preciso proclamar uma unidade totalizante: tanto constitutiva como funcionalmente. Esta afirmação é básica para a moral. O sujeito moral é o homem todo: concorre o homem integral e se expressa o homem total. Um comportamento terá maior ou menor densidade moral na medida em que seja expressão da pessoa (visão personalista da moral antes que uma visão objetivista).
A afirmação de que o homem é uma unidade totalizante não apaga a diversidade de aspectos que podem integrar o comportamento humano: exterioridade-interioridade, objetividade-subjetividade, intencionalidade-execusão. São aspectos ou dimensãos que é necessário ver em todo comportamento humano. Nos comportamentos concretos pode-se advertir a prevalência de uma ou outra dimensão. Mas o que não se pode perder de vista é a unidade pessoal de todo comportamento.
Podemos dizer que o sujeito é responsável por seu comportamento moral, mas muitos fatores influenciam no seu comportamento. Portanto, é necessário uma avaliação de cada tipo de influência que os indivíduos recebem para depois analisar seus atos. Diferente da moral casuística é necessário analisar caso por caso. Entre os fatores que influenciam as ações e o seu comportamento humano pode-se destacar:
- fatores externos: O fator político ou social vai influenciar o comportamento do homem na comunidade. O homem é um ser político que se realiza convivendo com seus concidadãos e realiza-se nos cargos civis e públicos e na organização cívica. O fator familiar em que o homem sendo realidade aberta não basta por si mesmo, ele precisa dos demais para viver; portanto, a união do homem e da mulher gera a família, onde um influencia o comportamento moral do outro. O fator religioso em que o homem tem por natureza uma abertura ao transcendente. Essa abertura faz com que o homem viva sempre na busca de Deus, essa busca sempre influências nas escolhas e no comportamento moral do homem. O fator econômico é um dos que mais influencia no comportamento moral do homem. A maioria das crises humanas está relacionada com o fator econômico. Ele gera a criminalidade e a violência. Portanto, se todos tivessem direito aos bens que o fator econômico devia dar a todos, a situação de violência e criminalidade seria outra. O fator cultural que faz com que uma determinada ação do homem seja moral ou não dependendo da cultura do mesmo. Existem ainda muitos outros fatores que são exteriores ao homem e que influenciam o comportamento moral.
- fatores internos: O fator racional em que os homens baseiam as suas ações no conhecimento racional que possuem. O fator psicológico que determina a ação do homem a partir das suas experiências interiores. Este condicionamento pode, na maioria das vezes, ser inconsciente. O fator físico também pode influenciar nas limitações do comportamento moral de certos indivíduos. O fator moral, em que a formação que cada pessoa recebeu vai influenciar nas atitudes pessoais.

2) CONSCIÊNCIA E DISCERNIMENTO MORAL: DESDOBRAMENTOS.
O conteúdo de consciência moral (ou consciência ética) é entendido como a capacidade de a pessoa humana avaliar as vivências e comportamentos livremente adotados pelo prisma da realização pessoal (isto é, reconhecê-los como “valores”) e perceber que o ser humano tem deveres e compromissos.
a) A consciência moral possui duas funções: a primeira é a de confrontar a coerência da opção com os valores reconhecidos como fundamentalmente realizadores do ser humano, à luz do seu projeto ético global. Aqui o sujeito vai gradativamente formando e consolidando sua consciência fundamental; a segunda função é o discernimento moral permanente em cada situação concreta, confrontando a coerência do comportamento atual com a opção fundamental. É o exercício atual da consciência moral ou a passagem da “consciência fundamental” à “consciência atual”.
b)Em se tratando de qualidade de consciência, são percebidas três: reta, verdadeira e certa. A consciência reta é aquela honesta, sincera, bem intencionada, que age de boa fé. É a qualidade mais fundamental. Ela tende a buscar sempre a verdade objetiva. O contrário da consciência reta é a viciosa, perversa, mal intencionada. A consciência é verdadeira quando um juízo moral subjetivo discerne corretamente o valor ou norma objetiva e alcança a verdade moral. Seu contrário é a consciência errônea, ou seja, aquela que no seu discernimento pessoal se engana a respeito da norma objetiva. A consciência certa é aquela que se sente segura de sua conclusão, não tendo dúvida ou incerteza sobre seu juízo moral. Seu contrário é a consciência duvidosa, insegura de sua conclusão ou juízo moral.
c) Já o discernimento moral (ou discernimento ético) consiste na reflexão consciente em vista do agir e tem a intenção de mostrar qual o dever moral e qual o a atitude mais sábia e realizadora da vida e promoção humana. O discernimento moral realiza a integração das dimensões subjetiva e objetiva da moral, para construir o comportamento moral perfeito. Sua função é levar o indivíduo, considerando sua natureza, pessoa e situação concreta que se encontra, ao comportamento verdadeiramente realizador da vida humana na pessoa e nos outros com quem e relaciona, ou seja, faz a mediação entre a realidade (valor objetivo) e a atuação da pessoa (valor subjetivo).
d) No que diz respeito ao discernimento em situação duvidosa é importante considerar aquilo que é mais importante, isto é, a realização da vida humana. Tais situações duvidosas são encontradas em âmbito individual e coletivo. No âmbito individual é preciso: primeiro, enumerar os valores morais implicados na situação em conflito, depois de avaliar e comparar os valores e colocá-los em ordem de prioridade ou importância e, por fim, questionar sobre a sua capacidade moral de assumir esses valores ou compromissos e fazer sua opção concreta.
Por sua vez, nas situações coletivas, para que haja o discernimento diante dos casos duvidosos, são necessários os seguintes passos: avaliar honestamente a bondade moral do fim visado, à luz do critério moral supremo, que é a promoção da vida; colocar em lista as estratégias planejadas e considerar o risco de perda de vida humana que elas implicam; e, depois, fazer uma avaliação comparativa ou balanço entre ganhos previsíveis (objetivo ou resultado positivo esperado) e perdas previsíveis Se os ganhos previsíveis podem compensar as perdas possíveis, a opção por uma estratégia de risco pode ser ética, desde que todos a assumam livre e solidariamente, sem que a ninguém seja imposto correr risco contra sua vontade ou consentimento.

II – MORAL SOCIAL

1. A DOUTRINA SOCIAL DA IGREJA PERTENCE NÃO AO CAMPO DA IDEOLOGIA, MAS AO DA TEOLOGIA E PRECISAMENTE DA TEOLOGIA MORAL.

A) Moralidade Pessoal E Vida Em Sociedade
A moral tem caráter social porque se manifesta somente na sociedade. As idéias, normas e relações sociais nascem e se desenvolvem de uma necessidade social. Teologicamente, podemos dizer que a moral é possível a todos os seres humanos e tem características universais.
O caráter social da moral implica uma particular relação entre homem/mulher que se dá particularmente e em comunidade. A moral implica sempre numa consciência individual que interioriza ou faz suas s regras de ação ela apresentadas com um caráter normativo, ainda que se trate de costumes antigos. Como não existem indivíduos isolados, não existe uma moral estritamente pessoal.
A parte mais estável do comportamento moral se manifesta nos hábitos e costumes, tende a sobreviver até mesmo após surgir uma nova estrutura social. O sujeito do comportamento moral é uma pessoa singular, embora seus atos morais tenham sempre um caráter social. A moral social é necessária para que haja um equilíbrio na promoção do bem comum e um equilíbrio entre o individual e o coletivo.

B) O Significado Das Encíclicas Sociais No Seio Da Igreja E Sociedade

A expressão moderna do Ensino Social da Igreja (ESI) surgiu no século passado com Leão 13. A partir de então, o ESI cresceu e difundiu-se rapidamente, amadurecendo a consciência social e a compreensão da Igreja sobre a matéria.

· RERUM NOVARUM - SOBRE A CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS (1891) – LEÃO 13
Levantou a voz contra as condições desumanas que eram submetidos os trabalhadores das indústrias. Leão 13 escreve esta encíclica tendo como cenário à exploração e a pobreza dos trabalhadores da Europa e USA no final do século 19. Visa à formação de uma sociedade justa, por isso é conhecida como a carta magna para uma ordem econômica e social mais humana. Leão XIII apoiava o direito dos trabalhadores formarem sindicatos, mas rejeitava o socialismo e defendia os direitos à propriedade privada. Discutia as relações entre o governo, os negócios, o trabalho e a Igreja. Muitos defendem que propunha uma estrutura social e econômica que mais tarde se chamaria corporativismo.
A encíclica critica fortemente a falta de princípios éticos e valores morais na sociedade de seu tempo e laica, uma das grandes causas dos problemas sociais. O documento papal refere alguns princípios que deveriam ser usados na procura de justiça na vida industrial e sócio-económica, como por exemplo a melhor distribuição de riqueza, a intervenção do Estado na economia a favor dos mais pobres e desprotegidos, a caridade do patronato aos trabalhadores.
Alguns pontos tratados: a) que o trabalho não deve ser considerado mercadoria, mas expressão direta da pessoa humana e, por isso, não deve a sua remuneração ser deixada às leis do livre-mercado mas segundo a justiça e eqüidade; b) ”a propriedade privada, mesmo dos bens produtivos, é um direito natural que o Estado não pode suprimir, comporta uma função social; mas é igualmente um direito que se exerce em proveito próprio e para o bem dos outros.”; c) a razão de ser do Estado é a realização do bem comum e dentre outras obrigações tem a de zelar para haja uma produção suficiente de bens materiais, que as relações de trabalho sejam reguladas segundo a justiça e eqüidade e que nos ambientes de trabalho não sejam lesados a dignidade da pessoa humana, nem no corpo e nem na alma; d)liberdade de organização e associação dos trabalhadores; e) operários e empresários devem regular as suas relações nos princípios da solidariedade e da fraternidade cristã, uma vez que, “tanto a concorrência do tipo liberal, como a luta de classes no sentido marxista, são contrárias à natureza e à concepção cristã de vida.

· QUADRAGESIMO ANNO – SOBRE A RECOSNTRUÇÃO DA ORDEM SOCIAL (1931) – PIO 11
Escreve em meio da aguda depressão econômica mundial. O Papa voltou seu olhar para a injustiça social, então reinante, e conclamou a todos para a reconstrução da ordem social, à esteira dos ensinamentos de Leão 13. Reafirmou o dever da Igreja de falar sobre questões sociais. Ao mesmo tempo que condena o capitalismo e a concorrência desleal, Pio 11 também condena o comunismo por promover a luta de classes. Apontou para a responsabilidade da propriedade privada, para o direito dos trabalhadores ao emprego e ao justo salário e à organização para reivindicar seus direitos. Insistiu no papel dos governos na promoção do bem comum de toda a sociedade. Qualquer empreendimento econômico está sujeito à justiça e à caridade, como leis básicas da vida social.
· MENSAGENS DE NATAL – DURANTE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL – PIO 12
O Papa afirma que a justa ordem social é absolutamente necessária para se obter a paz universal. Incentivou o espírito de cooperação que desembocou na instituição da Organização das Nações Unidas (ONU). Por isso mesmo, contabilizou em favor do ESI o grande apoio que a ONU sempre recebeu.
Reafirma que “o direito de propriedade dos bens é um direito natural; mas, segundo a ordem objetiva estabelecida por Deus, o direito de propriedade é limitado, pois não pode constituir obstáculo a que seja satisfeita a ‘exigência irrevogável de os bens, criados por Deus para todos os homens, estarem equitativamente à disposição de todos, segundo os princípios da justiça e da caridade.’”
As relações de trabalho devem ser reguladas primeiro entre os interessados e no caso destes não cumprirem ou não poderem cumprir os seus deveres então, compete ao Estado intervir no campo da distribuição e divisão do trabalho na medida em que o requer o bem comum. Pio XII afirma que a propriedade privada dos bens materiais deve ser considerada espaço vital para a família. Do que decorre o dever de assegurar os bens indispensáveis para que o pai de família possa bem cumprir os seus deveres para o bem-estar físico, espiritual e religioso de seus familiares o que confere também à família o direito de emigração.

· MATER ET MAGISTRA – SOBRE A RECENTE EVOLUÇÃO SOCIAL DA QUESTÃO SOCIAL – (1961) - JOÃO 23
O Papa escreve esta encíclica em resposta aos graves desequilíbrios existentes em todo o mundo, entre ricos e pobres. João 23 internacionaliza o ESI abordando pela primeira vez a situação dos países em via de desenvolvimento. Compromete o laicato na aplicação do ESI.
Lamenta a crescente distância entre as nações pobres e as nações ricas, a corrida aos armamentos e os apuros dos agricultores; defende a participação dos trabalhadores na posse, gestão e lucros das empresas; promove o auxílio aos países menos desenvolvidos, isento de intenções dominadoras; torna a doutrina social da Igreja parte integrante da vida cristã: convoca os cristãos a trabalharem por um mundo mais justo.

· PACEM IN TERRIS – SOBRE A PAZ DE TODOS OS POVOS – (1963) – JOÃO 23
Escrita durante o primeiro ano do Vaticano II, a Pacem in Terris foi a primeira encíclica endereçada a todas as pessoas de boa vontade. Publicada logo após a crise ocasionada pela ameaça dos mísseis norte-americanos sobre Cuba e a construção do Muro de Berlim, este documento papal alerta para os perigos de uma guerra nuclear. O tom otimista e o desenvolvimento de uma filosofia dos direitos causou impacto positivo no meio dos católicos e não católicos.
Define o âmbito completo dos direitos humanos enquanto fundamentos da paz; incita ao desarmamento; reconhece que todas as nações têm igual dignidade e igual direito ao seu próprio desenvolvimento; promove a revisão da distribuição de recursos e o controlo das políticas das empresas multinacionais; promove políticas estatais que favoreçam o acolhimento dos refugiados; propõe um conceito de sociedade baseada na subsidiariedade; indica a ONU como autoridade pública mundial encarregada da promoção do bem comum mundial; integra fé e ação.

· POPULORUM PROGRESSIO – SOBRE O DESENVOLVIMENTO DOS POVOS - (1967) – PAULO 6O.
Nesta encíclica Paulo 6o amplia o alcance da abordagem de Leão 13, que trata da luta entre classes, para chegar ao conflito dos países pobres e ricos. É a primeira encíclica dedicada ao tema do desenvolvimento. Aponta as causas econômicas da guerra e encarece a justiça econômica como base da paz. Faz uma crise feroz aos princípios básicos do capitalismo, inclusive à sede de lucro e ao pretenso direito absoluto à propriedade privada.
Responde aos clamores dos pobres e famintos, apontou para a dimensão estrutural da injustiça no mundo. Articula o papel da Igreja no processo do desenvolvimento e esboça a visão cristã de desenvolvimento. Conclama para uma ação urgente que respeite o destino universal das coisas criadas. Defende a necessidade de um planejamento universal e de ajuda para o desenvolvimento. Paulo 6o insiste na equidade que deve existir nas relações de comércio e na caridade universal. Insiste que o desenvolvimento é o novo nome da paz e exorta os cristãos a lutar por justiça. Refere-se ao direito que todos têm de se tornarem participantes do desenvolvimento integral do homem, apela para um trabalho conjunto das nações ricas e pobres, em espírito de solidariedade, com vistas à renovação e estabelecimento de uma ordem social justa. Para encorajar tão nobre empreendimento, ele constituiu a Pontifícia Comissão de Justiça e Paz.

· OCTOGESIMA ADVENIENS ("CHEGANDO A OCTOGÉSIMA" - CONVOCAÇÃO À AÇÃO) (1971) - PAULO 6O.
O Papa inicia sua carta urgindo redobrados esforço em favor da justiça e alertando as Igreja locais para o dever de corresponder aos apelos da situação. Examina a enorme gama de novos problemas sociais, criados pela urbanização, notadamente os que se referem à mulher, à juventude e aos novos pobres. Volta sua atenção para as aspirações e ideais de hoje, com destaque para o liberalismo e marxismo. Põe em relevo a necessidade de assegurar a igualdade e o direito de todos participar da vida social. Encoraja os cristãos a refletirem sobre a atual conjuntura histórica, a aplicarem os pricípios do Evangelho e a assumirem o papel político que lhes cabe. Incita à ação política em prol da justiça econômica; Pede uma análise objetiva da situação da sociedade de cada um para individuar medidas em prol da justiça; Pede uma resposta aos cristãos individualmente, e às Igrejas locais em geral, para situações de injustiça; Solicita ação política orientada para a mudança.

· EVANGELII NUNTIANDI – SOBRE A EVANGELIZAÇÃO DO MUNDO CONTEMPORÂNEO (1975) – PAULO 6O.
O Papa trata da responsabilidade da Igreja em proclamar a Boa-Nova nos moldes adequados à intelecção do povo do século 20. Todo cristão é chamado a difundir o Evangelho. Declara o combate da injustiça e prega a libertação como elementos essenciais da evangelização. Reafirma os ensinamentos conciliares sobre o papel da Igreja enquanto instituição e os cristãos como indivíduos na promoção da justiça no mundo.

· LABOREM EXERCENS - SOBRE O TRABALHO HUMANO – (1981) – JOÃO PAULO II.
O Papa reafirma a dignidade do trabalho, com base na dignidade do trabalhador;estabelece o ser humano como sujeito do próprio trabalho; uma ligação entre a dedicação à justiça e a procura da paz; pede que se fomente a prática de salários justos, posse conjunta, tal como participação na gestão e nos lucros, por parte dos trabalhadores; afirma o direito de todos os trabalhadores a formarem associações e a defenderem os seus interesses vitais; pede que os trabalhadores imigrantes sejam tratados segundo os padrões aplicáveis aos cidadãos; incita à justiça no emprego enquanto responsabilidade da sociedade, do patrão e do trabalhador. O Papa ainda aponta para a primazia do trabalho sobre as coisas, critica os sistemas não apóiam esses princípios. Apóia os direitos dos trabalhadores e dos sindicatos. A Laborem Exercens amplia e redefine o ensinamento da Igreja sobre a propriedade e sua crítica ao capitalismo e marxismo. Conclui com uma refexão sobre a espiritualidade do trabalho.

· SOLLICITUDO REI SOCIALIS (A SOLICITUDE SOCIAL DA IGREJA) – 1987 – JOÃO PAULO II.
O Papa avalia a gravidade da situação econômica mundial nos anos 80, como a dívida, o desemprego e a recessão que afetam a vida de milhares de seres humanos, não só nos países subdesenvolvidos, mas também nos ricos. Escolhe um conjunto de temas relacionados com a justiça, sobre o quem ele falará em suas viagens internacionais. Avalia a difícil situação dos países pobres, censura o conflito entre os dois blocos, o capitalista e o marxista. Refere-se aos obstáculos que retardam o desenvolvimento, como a estrutura de pecado, e convoca à conversão em favo da solidariedade e da opção pelos pobres. Ainda que recorde as responsabilidades dos países pobres, seu apelo mais forte volta-se para os países ricos.
Alguns Pontos tratados: Que se crie a vontade política de instituir mecanismos justos para o bem comum da humanidade; Que se dediquem os recursos para armas ao alívio da miséria humana; Que se reconheça a injustiça de alguns poucos terem tanto e de tantos não terem quase nada; Que o desenvolvimento seja planificado no respeito pela natureza; Que se convoquem as pessoas para a conversão à solidariedade - à luz da interdependência; Que se identifiquem as estruturas que impedem o desenvolvimento pleno dos povos; Que se reformem tanto o comércio internacional como os sistemas financeiros; Que se denunciem as estruturas pecaminosas.

· REDEMPTORIS MISSIO – A MISSÃO DO REDEMTOR – 1991 – JOÃO PAULO II
Esta carta trata de temas como inculturação e libertação. O Papa reafirma a libertação econômica e política desde que fundamentada na verdadeira libertação que vem de Cristo.

· CENTESIMUS ANNUS (O ANO CENTENÁRIO) – 1991 – JOÃO PAULO IIEsta Encíclica começa com uma recolocação e uma aplicação atualizada dos princípios fundamentais da Rerum Novarum. Relaciona o ESI com as tendências mais acentuadas e os acontecimentos dos últimos 100 anos, com destaque para os eventos do Leste Europeu, em 1989. Não perde a oportunidade de reafirmar a dignidade e os direitos humanos. Registra a queda do socialismo real, acautelando-nos, porém, a não pensar que essa queda possa significar uma vitória para o capitalismo. Reafirma que o objetivo da Igreja é o cuidado e a responsabilidade não somente pela humanidade, mas também por cada ser humano em particular. O ESI é um instrumento de evangelização, sendo que a mensagem social do Evangelho deve ser considerada motivação para a ação pastoral.
Alguns pontos tratados: Que se identifiquem as falhas das economias, tanto socialista como de mercado; Que se aliviem ou perdoem as dívidas dos países pobres; Que se avance com o desarmamento; Que se simplifiquem os estilos de vida e se elimine o desperdício nas nações ricas; Que se implementem práticas públicas a favor do emprego pleno e da segurança laboral; Que se estabeleçam instituições para tratar do controle das armas; Que se apele aos países ricos para sacrificarem seus lucros e poderio.

C) Contribuição Da Teologia Moral Para A Política E Economia
A moral regulamenta as relações entre indivíduos e entre estes e a comunidade. A política regulamenta as relações entre os grupos humanos, classes ou nações. A contribuição moral está justamente em favorecer um equilíbrio no que diz respeito à política, para que não haja moralismo abstrato (que aprova atos realizados por meios puros e acha que a simples moralização dos indivíduos possa transformar a política – esquecendo-se das estruturas). De outro lado se encontra o realismo político (que pretende afastar os atos políticos de qualquer avaliação moral). Diante de tudo isso, Jesus Cristo é apresentado como referência de postura política, lutou por uma convivência fraterna baseada no amor e na esperança. Isso serve de paradigma para uma apreciação crítica do mundo e da política, embora a Doutrina Social da Igreja atual valorize a participação dos fiéis leigos na política partidária.
A contribuição da moral para a economia está em destacar que os critérios fundamentais da moral econômica devem ser: a pessoa e a sociedade. A moral econômica deve primar pelos direitos do homem, pela justiça e pelos pobres. O caráter moral da economia deve ter como sujeitos, todos os homens e todos os povos, pois todos têm direito de participar da vida econômica e o dever de contribuir segundo as próprias capacidades, do progresso do país e da família humana. Em resumo a contribuição da moral resume-se na busca de impedir que o homem seja espoliado, alienado e não receba de forma eqüitativa o que lhe cabe.

2 – A Teologia Moral Social como incentivo ao compromisso cristão
1 - Dignidade humana
Ser digno significa ser merecedor, ser respeitado. A dignidade é qualidade integral e irrenunciável da condição humana, devendo ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida. Não é criada, nem concedida, motivo por que não pode ser retirada, pois é inerente a cada ser humano. A dignidade humana representa o fim último da sociedade. A ordem social e conseqüentemente seu progresso devem ordenar-se intensamente ao bem das pessoas, pois a organização das coisas deve subordinar-se à ordem das pessoas e não ao contrário (DSI n. 132).
Em nenhum caso a pessoa humana pode ser instrumentalizada para fins alheios ao seu próprio progresso, que pode encontrar cumprimento pleno e definitivo somente em Deus e no seu projeto salvífico: “efetivamente o homem, na sua interioridade, transcende o universo e é a única criatura que Deus quis por si mesma” (Gaudium et Spes, 24). Portanto, nem a sua vida, nem o desenvolvimento de seu pensamento, nem os seus bens, nem os que compartilham a sua história pessoal e familiar, podem ser submetidos a injustas restrições no exercício dos próprios diretos e da própria liberdade (DSI n. 133).
A pessoa não pode ser instrumentalizada para projetos de caráter econômico, social e político impostos por qualquer que seja autoridade, mesmo que seja em nome de pretensos progressos da comunidade civil no seu conjunto ou de outras pessoas, no presente e no futuro. É necessário, portanto que as autoridades públicas vigiem com atenção, para que toda restrição da liberdade ou qualquer gênero de ônus imposto ao agir pessoal nunca seja lesivo da dignidade pessoal e para que seja garantia a efetiva praticabilidade dos direitos humanos.
Nunca será possível uma autêntica moralização da vida social, senão a partir das pessoas e em referências a elas: efetivamente: “O exercício da vida moral atesta a dignidade da pessoa” (CIC n. 1706). Às pessoas cabe evidentemente o desenvolvimento daquelas atitudes morais fundamentais em toda conveniência que se queria dizer verdadeiramente humana (justiça, honestidade, verdade etc) que de modo algum poderá ser simplesmente esperada dos outros ou delegada às instituições. A todos, e de modo particular àqueles que de qualquer modo detêm responsabilidades políticas, jurídicas ou profissionais em relação aos outros, incumbe o dever de ser consciência vígil da sociedade e, eles mesmos por primeiro, ser testemunha de uma convivência civil e digna do homem (DSI 134).
As Escrituras Sagradas afirmam que Deus não faz acepção de pessoas (At 10,34; Rm 2,11; Gl 2,6; Ef 6,9), pois todos os homens têm a mesma dignidade de criatura à sua imagem e semelhança (CIC 1934). A Encarnação do Filho de Deus manifesta a igualdade de todas as pessoas quanto à dignidade: “Já não há judeu e nem grego, nem escravo e em livre, nem homem e nem mulher, pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3, 28; Rm 10,12; 1Cor 12,13)
“A dignidade de cada homem diante de Deus é o fundamento da dignidade do homem perante os outros homens” (Gaudium et spes, 29). Somente o reconhecimento da dignidade humana pode tornar possível o crescimento comum e pessoal de todos (Tg 2,1-9). A última igualdade no reconhecimento da dignidade de cada homem e de cada povo, deve corresponder a consciência de que a dignidade humana poderá ser salvaguardada e promovida somente de forma comunitária, por parte de toda a humanidade. Somente pela ação concorde dos homens e dos povos sinceramente interessados no bem de todos os outros, é que se pode alcançar uma autêntica fraternidade universal, de modo contrário, a permanência de condições de gravíssima disparidade e desigualdade empobrece a todos (DSI, 145).
Deve-se também respeitar as pessoas deficientes. Elas são sujeitos plenamente humanos, titulares de direito e deveres assim como qualquer outra pessoa (Laborem Exercens, 22). Uma vez que a pessoa deficiente é um sujeito com todos os seus direitos, ela deve ser ajudada a participar na vida familiar e social em todas as suas dimensões e em todos sos níveis acessíveis às suas possibilidades ( Laborem Exercens, 22) (DSI 148).

B) - Princípios e dimensões para o compromisso social
Princípios dos Direitos Humanos
Os direitos humanos são princípios, normas, valores universalmente reconhecidos como fundamentais para proteger, garantir e respeitar o ser humano. Devem assegurar às pessoas o direito de levar uma vida digna, isto é: com acesso à liberdade, ao trabalho, a terra, à saúde, à moradia, a educação, entre outras. Sua aceitação advém da compreensão de que Direitos Humanos baseiam-se na igualdade e na dignidade de todos os seres humanos. “É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimentos, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de construir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à proteção de sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa” (Gaudium et Spes, 26). O primeiro direito a ser enunciado neste elenco é o direito à vida, como bem lembrou a sua Santidade o Papa Bento XVI por ocasião de sua visita ao Brasil: “A Igreja é a favor da vida desde a sua concepção até ao seu natural declínio” (Veja também Eangelium Vitae, 2).
O Magistério da Igreja não deixou de apreciar positivamente a Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, que o memorável Papa João Paulo II definiu como “uma pedra miliária no caminho do progresso moral da humanidade” (DSI 152). A raiz dos direitos do homem, com efeito, há de ser buscada na dignidade que pertence a cada ser humano (Gaudium et Spes, 27). A fonte última dos direitos humanos não se situa na mera vontade dos seres humanos, na realidade do Estado, nos poderes públicos, mas no próprio homem e em Deus seu criador. Tais direitos são universais, invioláveis e inalienáveis. Universais, porque estão presentes em todos os seres humanos, sem exceção alguma de tempo, lugar e de sujeitos. Invioláveis, enquanto inerentes à pessoa humana e a sua dignidade. Inalienáveis, enquanto ninguém pode legitimamente privar destes direitos um seu semelhante, seja ele quem for, porque isso seria violentar sua natureza (DSI 153).

Necessidade dos direitos dos pobres
O amor da Igreja pelos pobres faz parte de sua tradição constante. Inspira-se no Evangelho das bem-aventuras (Lc 6,20-22), na pobreza de Jesus (Mt 8,20) e em sua atenção aos pobres (Mc 12,41-44). O amor aos pobres é também um dos motivos do dever de trabalhar, para se ter o que partilhar com quem tiver necessidade (Ef 4,28). Não se estende apenas à pobreza material, mas também às numerosas formas de pobreza cultural e religiosa (Centesimus Annus 57). O direito do pobre é algo muito caro para a tradição cristã. É por isso que seguindo os princípios evangélicos a Igreja opta pelos pobres como bem lembram os documentos do Celam.

Princípio da justiça
O Magistério da Igreja refere-se à justiça através de três termos: Justiça comutativa: regula as trocas entre as pessoas e entre as instituições no pleno respeito aos seus direitos. Ela obriga estritamente; exige a salvaguarda dos direitos de propriedade, o pagamento das dívidas e o cumprimento das obrigações livremente contraídas. Sem a justiça comutativa, nenhuma outra forma de justiça é possível. Justiça legal: refere-se àquilo que o cidadão deve aquitativamente à comunidade. Justiça distributiva: regula o que a comunidade deve aos cidadãos proporcionalmente às suas contribuições e as suas necessidades (CIC 2411).
Mediante as definições acima, pode-se dizer que justiça é a virtude moral que consiste na vontade constante e firme de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido. A justiça para com Deus chama-se virtude de religião. Para com os homens, ela nos dispõe a respeitar os direitos de cada um e a estabelecer nas relações humanas que promove a equidade em prol das pessoas e do bem comum (CIC 1807; Lv 19,15; Cl 4,1). Requer-se justiça não somente entre pessoa e pessoa, mas também entre pessoas individualmente e a comunidade, igualmente entre líderes da comunidade e a própria comunidade (DSI 201).
De acordo com a DSI, a justiça social impele o membro individual de um grupo social a buscar o bem comum do grupo todo mais do que seu próprio bem individual. A justiça social luta para trazer os autênticos valores morais à organização da sociedade e as instituições sociais: educacionais, econômica, políticas dentre outras.

Princípio da restituição
Restituir significa devolver ao verdadeiro dono o que dele havia sido injustamente retirado ou seu equivalente. A restituição é obrigatória quando a justiça comutativa tenha sido violada. Um pecado de injustiça não pode ser perdoado a menos que o penitente tenha a intenção de fazer a restituição da melhor maneira possível.
Aqueles que, de maneira direta ou indireta, se apossaram de um bem alheio têm obrigação de restituir ou devolver o equivalente em natureza ou em espécie, se a coisa desapareceu, bem como os frutos e lucros que seu proprietário legitimamente teria auferido. São igualmente obrigados a restituir, proporcionalmente à sua responsabilidade e ao benefício auferido, todos os que participaram de alguma maneira do roubo, ou tiraram proveito dele com conhecimento de causa, como, por exemplo, os mandantes, os que ajudaram ou encobriram o roubo (CIC 2412).

Princípio do bem comum
Deriva da unidade e igualdade de todas as pessoas. Segundo a G S, entende-se por bem com: “O conjunto daquelas condições da vida social que permitem aos grupos e a cada um de seus membros atingirem de maneira mais completa e sembaraçadamente a própria perfeição” (GS, 26;CIC 1905-1912). O bem comum não consiste na soma dos bens particulares de cada sujeito do corpo social, sendo de todos e de cada um, é e permanece comum, porque indivisível e porque somente juntos é possível alcançá-lo, aumentá-lo e conservá-lo, também em vista do futuro. O agir social alcança a plenitude realizando o bem comum (DSI, n.165). “As exigências do bem comum derivam das condições sociais de cada pessoa e estão estreitamente conexas com o respeito e com a promoção integral da pessoa e de seus direitos fundamentais” (CIC 1907). Essas exigências se referem ao empenho pela paz, à organização dos poderes do Estado, a um sólido ordenamento jurídico, à salvaguarda do ambiente, à prestação dos serviços essenciais à pessoa (alimentação, habitação, trabalho, saúde, liberdade religiosa). Cada nação tem o dever de contribuir em vista da bem comum da humanidade inteira (DSI 166).
“O bem comum empenha todos os membros da sociedade: ninguém está dispensado de colaborar de acordo com suas próprias possibilidades” (CIC 1913; Octogésima Adviniens, 46). É necessário que todos participem, cada um conforme o lugar que ocupa e o papel que desempenha. Este dever é inerente à dignidade da pessoa humana. Contudo, a responsabilidade de perseguir o bem comum compete não só às pessoas consideradas individualmente, mas também ao Estado, pois o bem comum é a razão de ser da autoridade política (CIC 1910). “O Estado deve garantir coesão, unidade e organização à sociedade civil de que é expressão” (Gaudium et Spes, 74) de modo que o bem comum possa ser conseguido com o contributo de todos os cidadãos. Cabe ao Estado defender e promover o bem comum da sociedade civil, dos cidadãos e dos organismos intermediários. O indivíduo humano, a família, não são capazes por si próprios chegar a seu pleno desenvolvimento; daí serem necessários as instituições políticas, cuja finalidade é tornar acessíveis às pessoas os bens necessários (DSI 168).



Princípio de Subsidiariedade
Esse princípio está no coração da Doutrina Social da Igreja, presente desde a grande primeira Encíclica Social Rerum Novarum. É impossível promover a dignidade da pessoa sem que se cuide da família, dos grupos, das associações, das realidades territoriais locais, daquelas expressões agregativas de tipo: econômico, político, social, cultural, desportivo, recreativo, profissional, às quais as pessoas dão vida espontaneamente e que lhes tornam possível um efetivo crescimento social (CIC 1882) (DSI 185).
Segundo a Encíclica Quadragésimo Anno, esse princípio é indicado como princípio importantíssimo da filosofia social. “Assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para confiar a coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedade menores e inferiores podiam conseguir é uma injustiça, um grave dano e perturbação da ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar seus membros e não destruí-los e nem absorvê-los” (Quadregesimo Anno 79). Assim, todas as sociedades de ordem superior devem-se colocar em atitude de ajuda, apoio, promoção e incremento em relação as menores. De tal maneira que todos os membros da sociedade sejam sujeito da mesma (DSI 186). O princípio de subsidiariedade protege as pessoas dos abusos das instâncias sociais superiores e solicita estas últimas a ajudarem os indivíduos e os corpos intermédios a desempenhar as próprias funções. Este princípio impõe-se porque cada pessoa, família ou corpo intermédio tem algo de original para oferecer à comunidade. A anulação desse princípio pode limitar ou mesmo anular o espírito de liberdade do indivíduo ou do grupo. A existência desse corresponde a valorização das organizações e associações intermédias (DSI 187).

Princípio de Participação
A participação é conseqüência do principio de subsidiariedade. Essa se exprime essencialmente, em uma série de atividades mediante as quais, o cidadão, como indivíduo ou associado com outros, diretamente ou por meio de representantes, contribui para a vida cultural, econômica, política, e social da comunidade civil a que pertence: a participação é um dever a ser conscientemente exercido por todos, de modo responsável e em vista do bem comum (Octogésima Anno, 22 e 46; Gaudium et Spes, 75; CIC 19130 – 1917; DSI 189).
A participação na vida comunitária não é somente uma das maiores aspirações do cidadão, chamado a explicitar livre e responsavelmente o próprio papel cívico com e pelo os outros, mas também uma das pilastras de todos os ordenamentos democráticos, além de ser uma das maiores garantias de permanência da democracia. O governo democrático, com efeito, é definido a partir da atribuição por parte do povo de poderes e funções, que são exercidas em seu nome, por sua conta e em sua favor; e é evidente, portanto, que toda democracia deve ser participativa. Isso implica que os vários sujeitos da comunidade civil, em todos os seus níveis, sejam informados, ouvidos e envolvidos no exercício das funções que ela desempenha (Centesimus Annus, 46) (DSI 190). A participação pode ser obtida em todas as possíveis relações o cidadão e as instituições: para tanto, particular atenção deve ser dada aos contextos históricos e sociais em que ela pode verdadeiramente ser posta em prática (CIC 1917; Gaudium et Spes, 30-31; Centesimus Annus, 44-45; Sollicitudo rei socialis, 15).

Princípio de Solidariedade
A sociabilidade confere particular relevo à intrínseca sociabilidade da pessoa humana, à igualdade de todos em dignidade e direitos, ao caminho comum dos homens e dos povos para uma unidade cada vez mais convicta. Nunca como hoje houve uma consciência tão generalizada do liame de interdependência entre os homens e os povos, que se manifesta em qualquer nível (Gauduim et Spes, 42; Laborem Eexercens, 14-15). A rapidíssima multiplicação das vias e dos meios de comunicação “em tempo real”, como os telemáticos, os extraordinários progressos da informática, o crescente volume dos intercâmbios comerciais e das informações estão a testemunhar que, pela primeira vez desde o inicio da historia da humanidade, ao menos tecnicamente, é já possível estabelecer relações entre pessoas muito distantes uma das outras ou desconhecidas.
Em face do fenômeno da interdependência e da sua constante dilatação, subsistem, por outro lado, em todo o mundo, desigualdades muito fortes entre países desenvolvidos e em desenvolvimento , alimentada também por diversas formas de exploração, de opressão e de corrupção, que influem negativamente na vida interna e internacional de muitos estados. O processo de aceleração da interdependência entre as pessoas e os povos deve ser acompanhado com um empenho no plano ético-social igualmente intensificado, para evitar as nefastas conseqüências de uma situação de injustiça de dimensões planetárias, destinada a repercutir muito negativamente até nos próprios países atualmente favorecidos (DSI 192).
As novas relações de interdependência entre homens e povos, que são de fato formas de solidariedade, deve transformar-se em relações tendentes a uma verdadeira e própria solidariedade ético-social, que é a exigida moral inerente a todas as relações humanas. A solidariedade, portanto, se apresenta sob dois aspectos complementares: o do princípio social e o de virtude moral (CIC 1939-1942). A solidariedade deve ser tomada antes de tudo no seu valor de principio social, transformando as estruturas de pecado que dominam as relações entre as pessoas e os povos em estruturas de solidariedade (Sollicitudo rei socialis, 36-36). A solidariedade é também uma verdadeira e própria virtude moral. É a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos (Sollicitudo rei socialis 38) (DSI 193).
A mensagem da DSI acerca da solidariedade põe me realce a existência de estreito vínculo entre solidariedade e bem comum, solidariedade e distinação universal dos bens, solidariedade e igualdade entre os homens e os povos, solidariedade e paz no mundo (Sollicitudo rei socialis, 17,39,45). O termo solidariedade amplamente empregado pelo magistério exprime em síntese a exigência de reconhecer, no conjunto dos liames que unem os homens e os grupos sociais entre si, o espaço oferecido à liberdade humana para promover ao crescimento comum, compartilhado por todos (DSI 194). O principio de solidariedade implica que os homens de nosso tempo cultivem uma maior consciência do débito que têm para com a sociedade em que estão inseridos: são deveres daquelas condições que tornam possível a existência humana, bem como do patrimônio, indivisível e indispensável, constituído da cultura, do conhecimento científico e tecnológico, dos bens materiais e imateriais, de tudo aquilo que a história da humanidade produziu (DSI 195).

Princípio de destinação universal dos bens
Este princípio se baseia no fato de que: A origem primeira de tudo o que é bem é o próprio ato de Deus que criou a terra e o homem, e ao homem deu a terra para que a domine com seu trabalho e goze de seus frutos (Gn 1,28-29). Deus deu a terra todo gênero humano, para que ele sustente todos os seus membros sem excluir nem privilegiar ninguém. Esta é a raiz do destino universal dos bens da terra (Gaudium et Spes, 69; Centesimus Annus, 31) (DSI 171).
Todo homem deve ter a possibilidade de usufruir do bem-estar necessário para o seu pleno desenvolvimento: o princípio do uso comum dos bens é o princípio de toda ordem ético-social (Laborem Exercens,19) e princípio típico da doutrina Cristã. Trata-se antes de tudo, de um direito natural, inscrito na natureza do homem e não de um direito somente positivo, ligado à contingência histórica, tal direito é original. Todos os outros direitos referentes aos bens, quaisquer que sejam, incluindo os de propriedade e de comercio livre, estão subordinados à destinação universal dos bens: não devem, portanto impedir, mas, pelo contrário, facilitar a sua realização; e é um dever social grave e urgente conduzi-los à sua finalidade primeira (Populorum Progressio, 22).
Uma vez que todos nascem com o direito ao uso dos bens, é igualmente verdadeiro que, são necessárias intervenções regulamentadas, fruto de acordos nacionais e internacionais, e uma ordem jurídica que determine e especifique tal exercício. A doutrina social não é contra a propriedade privada, desde que a propriedade dos bens seja eqüitativamente acessível a todos, de modo que todos sejam, ao menos em certa medida, proprietários (Gaudium et Spes, 71; Rerum Novarum, 11).

C) - O progresso moral em relação ao progresso histórico, social, político e econômico
De Leão XIII a João Paulo II, da Rerum Novarum a Centesimus Annus, decorreu um século de reflexão sobre a Doutrina Social da Igreja. Passados hoje mais de cem anos desse pensamento social, é possível identificar uma certa periodização, a qual aponta para um inegável progresso no tempo. Embora cientes de que todo corte histórico é arbitrário, não será difícil perceber determinadas etapas no percurso da DSI. Seguindo aproximadamente o esquema de Camacho, podemos falar em cinco períodos em que a doutrina social e a história do ocidente apresentam inquestionável correspondência.
1. O primeiro período é o próprio contexto do surgimento da DSI, no final do século XIX e início do século XX. A Igreja está diante de duas ameaças: o liberalismo e o comunismo. De um lado, os males provocados por uma economia centralizada na maximização do lucro e na acumulação capitalista. Destaca-se nesse quadro, entre outras coisas, a exploração do trabalho, as precárias condições de habitação e salubridade, o uso indiscriminado da mão de obra infantil e feminina, os baixos salários, as longas e penosas jornadas de trabalho e os deslocamentos humanos de massa. É o cenário referente às conseqüências da Revolução Industrial. A produção e a produtividade dão um salto nunca visto na história, mas a grande maioria da população fica à margem desse progresso. É o que leva a solicitude pastoral de um Leão XIII a preocupar-se com a “condição dos operários”.
Por outro lado, a chamada “onda vermelha” do socialismo ganha terreno a olhos vistos. Desde o Manifesto Comunista, em 1848, consolida-se a organização internacional que se desdobra em uma imensa rede de núcleos espalhados por todo continente europeu. Podemos mesmo afirmar que a Rerum Novarum nasce sob essa dupla motivação: uma mais explícita, voltada para a “questão social”, e uma mais encoberta, marcada pelo temor do avanço socialista.
Trava-se na Europa de então uma batalha surda entre liberalismo econômico e teoria marxista. Leão XIII se vê como que premido entre essas duas forças ideológicas, as quais, vale dizer, expressam interesses distintos e contraditórios. Se, por uma parte, procura impedir que os pobres e indefesos, especialmente os operários, sejam devorados pela ganância selvagem do capitalismo nascente, por outra, procura defendê-los do que ele chama o “principal inimigo da doutrina da Igreja”.
O contexto ideológico encontra-se carregado. Esse confronto entre economia de mercado e planejamento centralizado, deverá ser um tema recorrente nos documentos da DSI. Talvez não seja difícil, na época, vislumbrar no horizonte ainda distante os rumores da Primeira Guerra Mundial.
2. Dois fantasmas rondam o período seguinte, já nas primeiras décadas do século XX: o facismo/nazismo e o comunismo. Os escombros da Primeira Guerra Mundial, a Revolução Soviética e a crise de 1929 espalham instabilidade e insegurança por todo mundo. Como solução desesperada, nascem os movimentos integralistas e os regimes totalitários, com Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália, Stalin na União Soviética, Franco na Espanha e Salazar em Portugal. A Quadragesimo Anno (1931), encíclica de Pio XI em comemoração ao 40º aniversário da Rerum Novarum, e as mensagens radiofônicas de Pio XII, alertam para os perigos do poder absoluto do Estado, ao mesmo tempo em que se levantam em defesa dos direitos do cidadão. A Segunda Guerra Mundial, com um saldo de milhões de mortos e de mutilados, constitui o desfecho trágico dessa experiência de totalitarismos. O resultado final após explosão das duas bombas atômicas, em meados dos anos 40, é um mundo devastado por extrema violência e pelos genocídios, repleto de cinzas, escombros e pânico. Feridas profundas, jamais cicatrizadas, exibem o poder de destruição a que chegou a humanidade.
3. Apesar dessa experiência traumática, os anos que vão do pós-guerra ao Vaticano II constituem um período de euforia, se avaliados do ponto de vista dos índices econômicos. Impõe-se um duplo desafio: para os países centrais, após o vendaval devastador dos conflitos armados, trata-se de consolidar a democracia e os direitos humanos; já nos países periféricos, o dilema é como estender os benefícios do progresso às regiões mais pobres do planeta. Em ambos os casos, como equilibrar crescimento econômico e desenvolvimento social? É neste cenário que vemos surgir a figura paterna e materna de João XXIII.
Emerge com ele uma nova preocupação de pastor com a renovação da Igreja, voltada para horizontes igualmente novos, com vistas à manutenção de uma paz duradoura. Terreno fértil para duas encíclicas: primeiro, a Mater et Magistra (1961), com acento na doutrina social, revela a sensibilidade viva para com os novos problemas da sociedade moderna; segundo, a Pacem in Terris (1963), enfocando a doutrina política, aponta a necessidade de um compromisso conjunto para a construção da paz mundial.
Reafirma-se, em termos gerais, o paradigma da modernidade. O credo moderno – feito de quatro palavras chaves: razão, ciência, tecnologia e progresso – adquire novo impulso. João XXIII, com seu otimismo nato, é uma figura emblemática da época. Acredita-se na evolução do gênero humano para um patamar mais elevado, crença esta que voltará a ser fortemente questionada a partir dos anos 70. Como pano de fundo desse oxigênio de euforia, percorrem os céus nuvens sombrias da guerra fria entre os dois blocos mais poderosos do planeta – Estados Unidos e União Soviética. Do ponto de vista geopolítico, estamos diante de um mundo bipolarizado, em que demais nações figuram como alinhadas a um dos lados. A corrida armamentista constitui um equilíbrio sempre precário entre as forças militares. A humanidade convive com o perigo constante de uma guerra total de conseqüências imprevisíveis em termos de destruição e morte. Teme-se pelo fim da vida em todas as suas formas.
4. Logo em seguida, o mesmo João XXIII, com uma sensibilidade surpreendente, desencadeará uma reviravolta na Igreja, ao abrir suas portas ao Concílio Vaticano II (1962-1965). Trata-se de sintonizar a mensagem e a solicitude do magistério eclesial com os dilemas do mundo moderno. Dois sentimentos aparentemente contraditórios revestem o período em que ocorre o concílio. Ao lado da permanente ameaça de guerra total, o clima ainda é de otimismo quanto à reconstrução do diálogo e da paz. Não é à toa que o ecumenismo será, entre outras, uma das marcas do evento conciliar.
Entre os documentos do concílio, do ponto de vista social, ganha relevância a Gaudium et Spes, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje. Abrem-se novos caminhos e novos enfoques para o ensino social da Igreja. Esta, embora com algum atraso, resolve acertar os passos com o ritmo desenfreado do mundo contemporâneo. A chamada modernidade deixa de ser uma espécie de bicho papão para converter-se em campo de diálogo. Reconhecem-se os avanços e benefícios dos “tempos modernos”, ao mesmo tempo em que se apontam seus estrangulamentos e incongruências.
Caberá a Paulo VI, imediatamente após o Vaticano II, colocar em cena a contradição mais flagrante da vida moderna: a extrema discrepância entre relativismo, de um lado, o progresso humano, fruto da revolução científico-tecnológica de outro, a profunda desigualdade que divide as nações, os povos e as pessoas. Esse será o tema recorrente de seus escritos, tais como a encíclica Populorum Progressio (1967), a carta apostólica Octogesima Adveniens (1971) e a exortação apostólica Evangelli Nuntiandi (1975).
5. O período que vai do início dos anos 70 aos dias de hoje, será marcado pela crise estrutural do neoliberalismo e pelos desafios de uma economia cada vez mais globalizada. Aprofunda-se o questionamento sobre os “valores da modernidade”. Na verdade, durante todo o decorrer do século XX, esses valores já vinham sofrendo constantes ataques. Este século de profundos enfrentamentos bélicos, de genocídios e etnocídios, de colonialismos e de matanças indiscriminadas irá corroer pelas raízes o chamado credo da modernidade.
João Paulo II, com as encíclicas Laborem Exercens (1981), Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991), abordará e denunciará com energia os males deste novo tempo. Iniciada no começo dos anos 70, as crises se agravam cada vez mais. Seguem-se, como se sabe, duas décadas perdidas. O clima de descrença e instabilidade contamina não apenas a economia e o mercado mundial, mas estende-se também ao campo da política e da sociedade em geral. Trata-se, para alguns estudiosos, de uma verdadeira transformação cultural, uma transição paradigmática. Não é somente uma época de mudanças, e sim uma mudança de época. A polêmica em torno do pós-modernismo tem suas raízes nesse cenário de crises, dúvidas e interrogações crescentes.
Ressurgem como dilemas antigos e sempre novos os problemas relativos ao endividamento externo e interno, ao desenvolvimento desigual, ao neocolonialismo, à contaminação e depredação da natureza, à nova corrida armamentista e à exclusão social, entre outros. Temas que, aliás, ganharão contornos cada vez mais vigorosos na carta apostólica Tertio Millennio Adveniente (1994), na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in America (1999) e na carta apostólica Novo Millennio Ineunte (2001).
Na América Latina e Caribe, como se sabe, os documentos conclusivos dos encontros da Conferência Episcopal Latino-americana (Celam) em Medellín, Colômbia, em Puebla, México e em Santo Domingo, República Dominicana, tiveram o mérito de traduzir para este continente as orientações gerais da DSI, em particular do Concílio Vaticano II. Fizeram-no com grande coragem e inegável profetismo, desafiando inclusive os poderes constituídos. Não podemos esquecer que o núcleo central das intervenções dos bispos latino-americanos é, sem dúvida, a opção pelos pobres, com vistas a fortalecer ações pastorais para a erradicação da pobreza e da violência institucionalizada no continente.
III – BIOÉTICA

1) Bioética: uma missão e muitas tendências
a) Surgimento, desenvolvimento e princípios
a-1) Surgimento

Verifica-se o nascimento da bioética no dia seguinte à Segunda Guerra Mundial, com o julgamento de Nuremberg e o código homônimo (1947) como resposta ao mau uso de sujeitos humanos na experimentação médica durante o regime nazista. Dessa primeira crise bio-ética, sobretudo a partir da década de 1950 com as notícias sobre o que se passava no campo da biotecnologia, resulta um dos motivos principais na origem histórica do movimento e um primeiro capítulo fundamental da nova disciplina. Nuremberg introduz o instrumento essencial do consentimento voluntário e Helsinki I (1964) oferece a figura-chave dos comitês de revisão ética. Esta ciência que nasce deveria garantir a continuidade da vida na terra e estabelecer uma ponte para o futuro, principalmente sobre o abismo que separa ciência e humanidade. Bioética: uma ponte para o futuro foi exatamente o título escolhido por V. R. Potter, iniciador desse novo ramo da ética, para sua obra já assinalada em 1971. Principal missão: estabelecer um amplo diálogo em favor da vida.
Prolongando a sombra de Nuremberg, é conhecida nos Estados unidos uma série de violações aos direitos humanos na pesquisa médica norte-americana (como em Willowbrool State School for the Retarded, de Nova York; em Tuskegee, Instituto do Alabama; em Jewich Chronic Disease Hospital, no Brooklyn, entre outros). Em 1966, H. Beecher, médico de Harvard e figura destacada no início da bioética, publicou um famoso artigo no The New England Journal of Medicine, intitulado “Ethics and Clinical Research”, que denunciava faltas éticas graves em experimentos clínicos comuns. Quando se generalizou a sensibilidade do público norte-americano com reação a esses casos, a resposta política foi a regulação e o controle estatal da pesquisa clínica.
Além disso, as grandes transformações pelas quais o mundo tem passado também deram o alerta vermelho para a vida em termos ecológicos. De fato, se por um lado e por razões múltiplas se constata uma ameaça à estrutura genética em largos estratos da população, por outro se constata uma degradação crescente do meio ambiente. Tanto olhada pelo ângulo dos laboratórios, quanto do meio ambiente, a vida em todas as suas formas passou a sentir-se ameaçada. Com este panorama de fundo é que Potter enunciou seu livro com um artigo publicado um ano antes: “Bioética: a ciência da sobrevivência”.
Por sua vez, a tecnologia, além dos laboratórios, alcançava outros campos, trazendo esperanças e receios. Com isso também se verifica uma sempre maior inter-relação de problemas e na busca de soluções: o fenômeno da gloralização, começou a ganhar corpo exatamente na década de 1970. E colocando-se já nos horizontes da ciência, Potter, em 1988, diante de um certo confinamento da bioética no circuito de problemas de medicina clínica, publica o livro Ética global. Igualmente outros fenômenos importantes são englobados pela bioética, já caracterizados nos escritos de Potter: o pluralismo religioso e a crise dos sistemas médicos sanitários localizados no primeiro mundo. Tanto a descristianização do Ocidente, como a falta de atendimento a todos os problemas da saúde pública para uma população sempre mais exigente e mais envelhecida já davam margem para a manifestação de uma questão de sobrevivência.
Mas já em 1972, por ato do congresso dos Estados Unidos, foi criada a Behavioral Research, que trabalhou entre 1974 e 1978 publicando vários volumes e um relatório final, o Belmont Report, introdutor dos três célebres princípios da bioética que mudam a história da pesquisa clínica: o princípio de autonomia (consentimento informado do sujeito); o de beneficência e não-maleficência (proporção risco-benefício) e o da justiça (seleção eqüitativa dos sujeitos submetidos ao ensaio).
O experimento clássico com seres humanos, pelo contrário, não conheceu esta “atitude ética da pesquisa clínica”: falta de consentimento, ausência de critérios objetivos de ponderação de riscos e benefícios, marginalização dos afetados. Esses novos padrões éticos não tardaram a estender-se da experimentação clínica ao tratamento médico, consolidando a doutrina bioética do principalismo.

a-2) Desenvolvimento
Além de Potter, na bioéti­ca, há autores que dão maior ênfase ao médico holandês André Hellegers, especialista em obstetrícia e ginecologia. Teria sido ele que estabeleceu critérios bem defi­nidos para as discussões em bioética. Outros ressaltam a importância de Paul Ramsey, com seu livro O paciente como pessoa, publicado em 1970, portanto antes do livro de Potter. De qualquer forma é um fato que Potter soube captar certas urgências de um determinado momento histórico, tornando-as públicas e assim dando o ponto de partida de um determinado movimento. No caso de V.R. Potter, tratava-se de res­ponder às reivindicações de pessoas e camadas sociais que viviam nos países centrais, mas começavam a sentir insegurança diante de uma nova situação econômica e social com reflexos profundos no campo da saúde. Tanto num quanto no outro caso, percebe-se que a expressão de uma obra se fez expressão de um momento histórico. Por isso mesmo, os dois se tornaram tão conhecidos e tiveram tanta repercussão. Tanto um movimento quanto o outro mani­festaram extraordinária fecundidade teórica e prática, agi­tando os respectivos ambientes.
Vamos nos contentar com alguns acenos para as várias etapas. Poderíamos res­saltar ao menos três: a dos pioneiros que, além de publicar fundaram os primeiros institutos de bioética. Essa fase se estenderia de 1960 até 1977. Diagnóstico de morte cere­bral, criação de UTIs, transplantes de coração e de rins, di­agnóstico pré-natal, conhecimento dos mecanismos imu­nológicos de rejeição são deste período. A segunda fase seria a que, além de ser marcada por importantes desco­bertas e experiências bem-sucedidas no campo da biotec­nologia, coincide com a abertura de uma série de impor­tantes institutos, centros, comitês e associações de cunho internacional de bioética. Essa se estenderia até 1998, quando novos acontecimentos de porte revolucionaram a área. A terceira fase seria a nossa, que certamente passará para a história como a era na qual se levou praticamente a termo o Projeto Genoma Humano. A clonagem e outros métodos de reprodução em laboratório, com todos os de­bates daí surgidos, também deixarão marcas profundas.
Na linha de raciocínio de que nada emerge do nada, convém notar a proximidade de alguns fatos significativos que praticamente coincidiram com a publicação do livro de Potter. Assim, pouco antes um filósofo e um psiquiatra, respectivamente D. Callahan e W. Gaylin, criaram perto de Nova York o Hastings Center, instituto destinado a pre­parar profissionais para a área de saúde; e logo em 1971, financiados pela família Kennedy, o teólogo metodista P. Ramsey e o obstetra A. Hellegers ergueram na Universi­dade Georgetown, em Washington, o célebre Instituto Kennedy, para estudos da reprodução humana e da bioéti­ca. Um grande número de médicos, filósofos e teólogos que marcaram os estudos de bioética com todos os seus desdobramentos teóricos e práticos deram sua colabora­ção nesse instituto, caracterizando assim desde o início certas marcas da bioética, sobretudo a interdisciplinarida­de e o diálogo ecumênico.
Tanto em termos de publicações, quanto em termos da fundação de institutos, centros de reflexão e comitês de bioé­tica, o período dos pioneiros foi de uma fertilidade incrí­vel. Em poucos anos a bioética se tornou um dos assuntos mais ventilados em todos os círculos, e um dos assuntos so­bre o qual mais se escreveu. São simplesmente inúmeros os artigos, revistas e livros que vieram à luz, como também fo­ram numerosos os códigos oriundos das mais diversas ins­tâncias para demarcar os limites das pesquisas e das expe­riências. Entre as publicações de maior destaque deve ser lembrada a volumosa Enciclopédia de bi­oética, da autoria de W. Reich, em quatro volumes. Conta com 290 colaboradores e ocupa 1.900 páginas. O mais no­tável é que esta obra foi publicada já em 1978, e que, depo­is, numa reedição ampliada e revista, tornou-se simplesmente referência obrigatória. Mas outras enciclopédias do gênero apareceram posteriormente, sobretudo retratando as conquistas do Projeto Genoma Humano: cada vez mais volumosas e cada vez mais específicas num campo que conta com incontáveis desdobramentos.
No que se refere mais especificamente ao Brasil, a es­truturação da bioética como centro de interesse organizado remonta apenas aos anos de 1990. Em relação à Europa, por exemplo, isto é considerado tardio. A Sociedade Brasileira de Bioética, que hoje conta com 400 membros, só foi fundada em 1995. Em compensação já se efetivaram cinco congressos nacionais, e o Brasil sediou o VI Congresso In­ternacional, ocorrido em Brasília de 30 de outubro a 3 de novembro de 2002. Deste congresso participaram nada me­nos do que 1.352 pessoas, representando 62 países. No que se refere ao número de publicações feitas por brasileiros, não chega a ser muito amplo, mas algumas publicações são significativas, como significativa é a atuação de vários bra­sileiros nos quadros de organizações internacionais. A re­vista mais expressiva é publicada pelo Conselho Federal de Medicina, e chama-se Bioética. Ademais, várias universi­dades brasileiras concedem o título de pós-gradução latu sensu em bioética. Talvez a contribuição mais importante de brasilei­ros e latino-americanos consista num certo enfoque da bioé­tica, que faz uma leitura crítica de outras perspectivas.
* O desenvolvimento na pós-modernidade:
A partir da etapa fundacional, o densenvolvimento da ética da investigação em sujeitos humanos se inscreve no contexto pós-moderno de relativismo epistemológico e moral que acompanha a transformação científica, social e política da medicina e a atenção à saúde, configurando o complexo bioético dos princípios (beneficência e não maleficência, autonomia e justiça) dramatizado por seus respectivos protagonistas (o médico, o paciente e a sociedade) e atravessado pelo pigmalionismo tecnocientífico, pelo narcisismo individualista e pelo knockismo economicista. Precisamente: Pigmalião é narrativa da medicina do desejo ou antropoplástica, remodeladora da natureza humana; Narciso é a narrativa da utopia da saúde, do culto ao corpo e da qualidade de vida; Knock é a narrativa da medicalização da vida, da sociedade terapêutica no mundo do mercado. O complexo bioético motoriza a pesquisa clínica e determina o alvo móvel da ética correspondente, promovendo uma medicina da evidência, da alternativa e da eficiência.
Em primeiro lugar, a condição tecnocientífica da presente medicina, com suas intervenções “demiúrgica” sobre a natureza humana, estimula uma pesquisa biomédica inovadora (ou novas práticas não validadas, na terminologia de Levin), questionando a tradicional separação daquela com relação à pratica clínica, agora baseada na evidência como uma “mudança de paradigma”. Em segundo lugar, a transformação social da atual medicina, com o papel individualista do paciente enquanto agente racional e livre, derivou o princípio de autonomia a partir do consentimento informado, na direção de um direito de disposição dos pacientes ao acesso e não-discriminação nos benefícios de ensaios clínicos como terapia alternativa ou de última chance. Em terceiro lugar, a metamorfose política da medicina hoje, com o comportamento da saúde como bem de consumo e a alta explosiva dos custos no setor, gera uma pesquisa científica de cunho industrial submetida ao mercado e inclinada ao racionamento dos recursos sanitários em conformidade com o princípio regulador da eficiência. Assim se reflete o complexo bioético da pós-modernidade – pigmalionismo tecnocientífico, narcisismo individualista e knockismo economista – na pesquisa biomética com seres humanos, particularmente os ensaios clínicos randomizados (medicina da evidência, medicina da alternativa e medicina da eficiência).



a-3) Princípios
O horizonte estabelecido por Potter na bioética é bastante amplo, recobrindo não apenas a medicina e mormente a medicina clínica, mas se entendendo para os campos da ecologia, da sociedade e da economia. O que se entende hoje por bioética praticamente configurou-se com a publicação de dois livros: o de Beauchamp & Childress (1979) e o de Engelhardt (1986). A partir sobretudo dessas obras a bioética pode ser considerada como um estudo sistemático das ciências da vida e da saúde, um instrumento prático para orientar pesquisadores e clínicos, à luz de certos princípios básicos: o da autonomia, da beneficência, da justiça, e da não-maleficência.
Princípios de ordem teleológica (indicam uma direção a ser perseguida):
Principio da autonomia: Por trás deste princípio se esconde longa história de relacionamento paternalista entre médico e paciente. Sob a inspiração do Juramento de Hipócrates o médico aparece como aquele que saber, aquele que cura, aquele que decide. Os avanços da tecnologia médica, sempre mais especializada e aparelhada, o descrédito no qual viveu durante muito tempo a denominada medicina popular, não apenas confirmaram a mitológica figura do médico e dos agentes de saúde, mas reforçaram ainda mais. O “paciente”, ao contrário, tinha que se entregar de corpo e alma nas mãos do médico. Bom paciente não reivindica, não comenta, simplesmente obedece. Quanto mais submisso, melhor. Com isso, não apenas eram negadas a ele as informações oriundas dos exames, mas também era desaconselhado a assumir qualquer iniciativa em termo de busca de outros caminhos. Nos bastidores desta atitude ficavam ainda mais suspeitas de que muitos pacientes não passavam de cobaias para experiências tanto de medicamentos, quanto de procedimentos clínicos.
Foi percebendo este quadro de fundo que os pioneiros ressaltaram o princípio da autonomia como uma espécie de princípio primeiro e fundante de uma nova postura global: ninguém pode decidir pelo enfermo, desde que este apresente condições mínimas para isso. E ainda que estas lhe faltem, na cabe ao médico, mas ao círculo familiar tomas as decisões mais importantes. A tomada de decisão, contudo, tem a pressuposição de que os doentes sejam devidamente informados não só sobre o diagnóstico, como também sobre as várias alternativas para um intervenção de ordem terapêutica. Com isso passou a ganhar força o que se denomina de “direito ao consentimento informado”. Assim, a função primordial do médico não é mais a de tomar decisões, mas a de ajudar o doente a, devidamente informado, tomar decisões cabíveis. Embora esse princípio já fosse conhecido na filosofia moderna e sua aplicação na prática nem sempre seja fácil, sobretudo no contexto de pessoas que apresentam um nível econômico, social e intelectual muito baixo, sem dúvida esse princípio instaurou um novo período na prática da medicina. Nele tanto os doentes quanto os agentes de saúde passam a gozar de um novo status: é decretado o fim do paternalismo e cresce a idéia de parceria em vista a uma causa comum.
Princípio da beneficência (sempre buscar o bem do doente): este segundo, na concepção dos pioneiros deveria vir associado ao da autonomia, se direciona mais para o papel do médico. Ao mesmo tempo que o médico deverá estar continuamente atento para não ferir a autonomia do doente, deverá estar igualmente atento para os procedimentos que vai tomar para não causar nenhum tipo de prejuízo a quem é atendido. Embora na teoria seja relativamente fácil de entender que se trata de cumprir, por dever, aquilo que normalmente os códigos de ética médica prevêem, levar o princípio à prática nem sempre é fácil. As dificuldades crescem na medida exata em que vão se aprimorando os expedientes para prolongar a vida dos pacientes em estado crítico, mas para quem é difícil entrever a possibilidade de uma reversão do quadro. Ou seja, quanto mais se desenvolve a tecnologia, mais surge no horizonte do médico a pergunta sobre os limites dos cuidados do enfermo e a obstinação terapêutica.

Princípios de ordem deontológica (mais incisivos):
Princípio da não-maleficência: apesar de alguns estudiosos preferirem o incluir no da beneficência, como uma espécie de contraponto, a distinção existe por muitos estudiosos, pois no primeiro caso se considera a ação enquanto destinada a conseguir certos objetivos, e no segundo, se ressalta que não é qualquer ação teoricamente benéfica que se justifica. De fato, a não-maleficência, a não ser confundida com má vontade, não considera tanto o ângulo de intencionalidade, mas ressalta o do resultado da ação. Tanto na Teologia Moral quanto na ética médica tradicional já apresentavam enfoques que manifestavam a mesma preocupação: eram do denominados princípios de duplo efeito, da totalidade e do mal menor. Todos ele no fundo pretendem a mesma coisa: evitar prejuízos ao doente, mesmo que se imponham certas ações que possam ocasionar algum mal, não desejado, mas previsível, como efeito reflexo.
Princípio da justiça: apesar de não ser novo, adquiriu novo vigor exatamente em função da crise dos institutos de previdência social. Nos anos de 1970, como reflexo de uma grande crise econômica, mas também do envelhecimento da população nos países centrais, os sistemas previdenciários perceberam que já não era possível atender às necessidades de todos. Daí a decisão “salomônica” da maioria dos países centrais: atendimento básico para todos, mas necessidade mais específicas serão cobertas por empresas particulares de seguro. O que em princípio é medida sábia, acabe se revelando como fonte de conflitos e injustiças. Indiretamente ao menos vão emergindo outros critérios, como o da utilidade social, dos méritos ou até mesmo da capacidade de pagar dos doentes. O risco de discriminação, sobretudo relacionada com idade e condição social, torna-se efetivamente muito grande. Daí o princípio da justiça não apenas dever estar sempre presente, mas também sempre de novo confrontado com a realidade, para ajudar a discernir o que é de fato necessário e o que é supérfluo, no contexto de uma sociedade que tende a fazer sempre novas restrições aos denominados benefícios.

b) Biotecnologia e desafios para a teologia
A preocupação com a dignidade humana, por parte da Igreja, remete para sua origem e sua razão de ser e está diretamente ligada a Deus, que fez todos à sua imagem e semelhança. Desde que, na pessoa de Jesus Cristo, Deus assumiu a condição humana, a Igreja compreende a promoção e defesa de sua dignidade como parte integrante de sua missão. Ao longo da história esta consciência foi-se manifestando tanto por gestos concretos de solidariedade, como por instituições e documentos.
A novidade da situação nos campos da genética e das biotecnologias, novidades por vezes veiculada de maneira sensacionalista pela mídia, bem como a complexidade das questões obrigam, antes de mais nada, a um questionamento sobre o que está ocorrendo de fato. Apesar da ambigüidade que acompanha os avanços biotecnológicos, querer-se também sinalizar os avanços seja em termos de produção de bens e de saúde, seja em termos da possibilidade de uma nova consciência e de novas práticas políticas e sociais. Ao mesmo tempo é preciso denunciar o que fere a dignidade do ser humano e a inviolabilidade de sua vida. É no contexto de esperanças e desafios que se ressalta a missão como Igreja Católica.
Este não é o primeiro momento da história que pode ser classificado como “novo”. Quando as viradas históricas são muito rápidas e profundas, costuma-se falar em revoluções. Estas revoluções sinalizam aspectos econômicos, políticos, sociais, culturais, tecnológicos ou religiosos. O que é comum a todas estas revoluções é que, apesar da profundidade e rapidez das mudanças, persiste uma certa continuidade com o período anterior, seja em termos de conhecimentos, seja em termos de práticas. A revolução biotecnológica parece colocar-se num nível inda mais surpreendente, pois mergulha nas profundezas do código genético, tanto para conhece-lo como para, eventualmente, altera-lo. Hoje, existe, de fato, uma revolução biotecnológica em curso e a partir dela têm sido alcançados alguns resultados impensáveis em um passado recente. Isso fascina e preocupa ao mesmo tempo.
Quando se fala de genética e de biotecnologia, devem-se distinguir várias etapas. Numa etapa bem primitiva, tanto a genética como a biotecnologia dispunham apenas de observação e de um aproveitamento de recursos naturais. Numa segunda fase incrementada pela revolução industrial, passa-se a produzir “mais e melhor”, inclusive com a utilização de produtos químicos. A denominada “revolução verde” é desta etapa. E neste mesmo período, tanto na linha dos conhecimentos, quanto na linha dos procedimentos, destaca-se a descoberta das leis da hereditariedade feita pelo monge Gregor Mendelm chamado pai da genética, em meados do século XIX. E a biotecnologia no sentido atual resulta de um conglomerado de ciências e tecnologias.
Para se perceber melhor o alcance da revolução biotecnológica atual, convém lembrar algumas características. A primeira delas remete exatamente para esse conglomerado, onde, a rigor, as tradicionais fronteiras entre ciência e tecnologia, entre mecânica, física, química, biologia, fisiologia, engenharia, eletrônica, dão lugar a uma verdadeira rede, semelhante àquela que se estabelece na informática. Outra característica vem representada pela segurança e rapidez com as quais os resultados podem ser ordinariamente previstos, diminuindo os ricos e o tempo despendido. Ainda outra característica é aquela de uma confiança, por vezes exagerada, na capacidade técnica para resolver os problemas humanos mais complexos. Mas nesta terceira fase, chamada biotecnologia de ponta, há muita coisa em comum com a antiga (primeira fase) e moderna (segunda fase). Ambas pretendem descobrir e criar variações genéticas, visando resultados; ambas querem selecionar as variações desejadas; ambas querem incorporar novos traços desejados e testar novas variedades; ambas sentem a necessidade de publicar os resultados.
Uma vez ressalvadas as semelhanças, convém ressaltar as diferenças. A primeira grande encontra-se na rede de disciplinas diferentes que a sustentam. Aproximou ciências, o que só se tornou possível com uma conjugação interdisciplinar ampla, tanto em termos de conhecimentos quanto tem termos de tecnologia. Em termos de conhecimento pode-se enumerar a bioquímica, a engenharia bioquímica, a engenharia química, a microbiologia, a fisiologia, a imunologia, a genética, a biologia celular, a molecular, as ciências dos materiais, as ciências da computação... Em termos de instrumentos biotecnológicos podemos lembrar: engenharia genética, engenharia de tecidos, engenharia de proteínas, tecnologia de cultura de células e tecidos, tecnologia de bioprocessamento, tecnologia de biossensores, tecnologia anti-senso, tecnologia de “chip” de DNA. Esta conjugação, tanto de conhecimentos quanto de procedimentos tecnológicos, de início se dá por áreas afins, para depois ir abrindo um círculo maior.
Outra grande característica da biotecnologia de ponta encontra-se numa descoberta fundamental, que verdadeiramente revolucionou a genética antiga: a estrutura do DNA e seu funcionamento, tanto para garantir a identidade genética quanto para possibilitar uma grande originalidade de seres. Isto refere-se ao genótipo e ao fenótipo, onde o primeiro marca as constantes, e o segundo a aparência e evolução. Acontece que um vez de posse deste conhecimento, um passo seguinte levou à descoberta do DNA recombinante, pelo qual se podem provocar fusões celulares e produzir novos bioprocessamentos. O que antes ocorria de maneira expontânea agora pode ser provocado a qualquer hora em laboratório.
Alterando artificial e deliberadamente a composição molecular, que regula a vida e suas funções, a biotecnologia de ponta encontra-se apta para criar novos seres e dotá-los de características não encontradas na natureza. Nisso, também não deixa de ser um exercício de poder, com profundas implicações éticas, a escolha prévia de óvulos e espermatozóides, seja visando à inseminação, seja visando à fecundidade artificial com características especiais. Se antes se dispunha apenas de organismos naturais, que nem sempre apresentavam o conjunto de propriedades desejadas, agora se produz o que quiser, quando quiser e como quiser. Essa situação soma-se a complexidade do debate relacionado com a partenogênese[1] e, sobretudo, com a clonagem.
A primeira constatação foi de que pelo menos a partir de 1973, quando se descobriu o DNA recombinante, estavam ocorrendo clonagens de células. O fato é que embora os seres humanos tenham nascido por reprodução sexuada, o desenvolvimento de todos os seres multicelulares – inclusive o humano – envolve clonagem. Com certeza, em meio às discussões concernentes à clonagem, uma das mais importantes descobertas foi a da célula-tronco, que comportam duas características básica: têm autoconcervação ilimitada e podem produzir células progenitoras capazes de se desdobrarem quase indefinidamente.
A partir desses elementos, a Igreja julga como obrigação fazer-se presente também nesta hora na qual estão ocorrendo transformações tão profundas na linha dos conhecimentos e da capacidade de intervir nos mecanismos mais secretos da vida e de responder alguma coisa à esses desafios. Alguns setores da sociedade mais ligados a empresas de biotecnologia parecem ignorar o passado da Igreja de defesa da vida na sociedade da e contestam sua liberdade de atuação no presente. Por isso se julga conveniente relembrar as razões da fé e a missão específica confiada por Jesus Cristo: a missão de anunciar o Evangelho da Vida, centro da mensagem de Jesus Cristo.
Primeiro, nenhuma das teorias se mostrou mais convincente do que aquela certeza que encontramos expressa já nas primeira páginas da Bíblia: na origem de tudo só poderia mesmo estar um Deus infinitamente sábio e todo-poderoso para criar o que criou e como criou todas as coisas. Todas trazem as marcas de Deus e muitas foram vivificadas, tendo os seres humanos recebido o “sopro divino”, criados à imagem e semelhança de Deus. O mesmo livro do Gênesis assegura que Deus não criou o mundo pronto, mas quis que os seres humanos fossem parceiros na obra da criação. Ademais, Deus confiou aos seres humanos a administração de tudo, mas com algumas condições para que se tenha êxito em alguns empreendimentos. A primeira delas diz respeito à sabedoria da gestão, o que comporta levantar sempre de novo a pergunta sobre o sentido mais profundo que se esconde por trás de tudo o que existe. A segunda condição é a de que os seres humanos devem agir em solidariedade, de tal forma que os mais fracos sejam amparados pelos mais fortes. Ou seja: a gestão sábia pressupõe comunhão dos seres humanos com o Criador, entre si e com as demais criaturas.
Assim, se por um lado os documentos eclesiais manifestam a satisfação com o avanço das pesquisas científicas e o fato de os seres humanos irem tomando em mãos o próprio destino; por outro, fica patente a preocupação com a possibilidade do desconhecimento dos limites, pois “nem tudo que é tecnicamente possível é moralmente admissível” (DV, n.4).
Com muita clareza, a Donum Vitae destaca: o valor inestimável da vida, o direito primeiro e fundamental à vida e sua dignidade de pessoa, o respeito devido desde o momento da fecundação, a união indissolúvel entre amor e procriação; apoio aos procedimentos de fato terapêuticos, desde que sejam respeitados os critérios éticos. Contudo, proibe-se: reprodução em laboratório, inseminação e fecundação artificiais, clonagem e partenogênese, manipulação de embriões, enfim, tudo contra a dignidade humana. Já a Evangelium Vitae apesar de ter como foco o homicídio, aborto, suicídio assistido e eutanásia, faz uma denúncia mais mais ampla dos contextos que destroem a vida humana.

c) A ética entre o persistente e o emergente
Persistente são todos os problemas que afligem a humanidade desde os tempos remotos; problemas de ordem social, econômica e política, tais como: a fome, a miséria, a exploração, a opressão, a injustiça, dentre tantos outros problemas que permanecem junto a humanidade e persistem em continuar. Isto, levando-se em conta que a mudança de mentalidade do ser humano é algo que não ocorre da noite para o dia, é a longo prazo. Neste sentido, desconsiderando fatores exteriores, mas levando-se em conta a possibilidade de se realizar um árduo trabalho de conscientização ética e humanitária, até uma mudança concreta de atitude para a resolução destes problemas, gastar-se-ia muito tempo. Isto poderia, praticamente, ser encarado como uma ideologia. Entretanto, uma ideologia que merece empenho e dedicação para a sua consumação prática.
Por sua vez, entende-se por emergente, problemas de ordem prática que ganham destaque na sociedade moderna, problemas típicos de uma sociedade industrializada e desenvolvida. Como exemplo, temos: a pesquisa e o desenvolvimento de tratamento capilar, fato esse que consome grande quantidade de dinheiro; as pesquisas realizadas para aprimoramento de técnicas de rejuvenescimento, tratamento de pele, entre tantas outras preocupações estéticas e típicas de um esbanjamento financeiro. Temos ainda, três megaprojetos que apareceram dentre as questões emergentes da contemporaneidade: o projeto Genoma, o Manhattan e o Apollo. O primeiro revolucionou os conhecimentos genéticos, através da leitura do DNA[2], ou seja, dos componentes químicos que contêm os segredos biológicos mais profundos dos seres; o segundo foi direcionado para a energia nuclear e o terceiro para a conquista dos espaços siderais. Cada um desses desembolsou das nações um alto gasto nas últimas décadas, e é causa de uma grande disputa que atemoriza todas as camadas da sociedade.
Frente a estas realidades, carece-se de uma estrada segura para avaliar e traçar metas seguras de melhora e de real desenvolvimento sócio-psico-econômico. É aí que se dá o empenho da ética para ser a ponte de equilíbrio entre o persistente e o emergente. O emergente consome muito da economia e da atenção da ciência hoje. Mas muitos questionamentos poderiam ser feitos quando a real importância que se tem dados a esses problemas. Pois, se por um lado todo o trabalho em torno dos genes tem sido relativamente alto, por outro, a importância dos genes é, em certo sentido, relativa. Acontece que são relativamente poucos os genes que atuam sozinhos; assim, é errônea a tendência de se imaginar que bastaria identificar os genes causadores de doenças ou anomalias que ficaria fácil curá-las. Do mesmo modo, a pesquisa nuclear também tem seu “calcanhar de Aquiles” como mesmo mostrou as bombas em Hiroshima e Nagasaki; e a conquista do espaço é controvertida quando se fala em buscar outros mundos habitáveis para o ser humano quando a terra não tiver mais recursos. Ainda mais, como é sabido, projetos financeiros referentes à produção de armas e à energia nuclear são quase sempre generosamente dotados. Projetos de caráter humanista são menos contemplados.
Assim, a ponderação ética entre o persistente e o emergente encontra-se, primeiramente, na reflexão se seria tão significativo aplicar a total atenção e o fundo econômico em torno de problemas como estes supracitados ao invés de se gastar com o grande contingente populacional que padece com a modernidade. Surgem, deste modo os seguintes questionamentos: vale mais aplicar dinheiro em pesquisas para cura de doenças, ou aplicar na prevenção delas elevando a qualidade de vida do ser humano? Seria pertinente avançar com as pesquisas nucleares depois do desastre de Hiroshima e Nagasaki? É plausível se gastar tanto com a busca de outros mundo para o ser humano viver, que proteger e conservar o ecossistema da terra para que os recursos não se acabem, mas se renovem? É coerente gastar tanto com pesquisas de resultado duvidoso e deixar que o problema da fome e da miséria persista cada vez mais na humanidade?
Com isso, percebe-se que a ética entre o persistente e o emergente é uma reflexão que se abre a medida que surgem situações que colocam em choque o grau de importância dado a certos problemas em detrimentos de outros.

2) Bioética: novo jeito de cuidar e promover a vida
O Valor e a Inviolabilidade da Vida Humana

A tradição Cristã apresenta um núcleo de pensamento sobre a vida que sempre é evocado para destacar a dignidade do ser humano: a vida como dom de Deus, o homem criado a imagem e semelhança de Deus, a existência de uma alma espiritual infundida por Deus. A vida é sempre vista a partir de Deus, perante Deus e voltada para Deus. O valor de toda vida humana nos advém do fato da Encarnação do Verbo, que assume nossa natureza e nossa história: a fé em Cristo homem reforça e consagra tudo o que é humano.
Independente do enfoque religioso, a vida do homem tem um valor em si mesma e por si mesma. Esse valor constitui a base do fundamento para que qualquer outro valor do ser humano possa se desenvolver em sua projeção pessoal e social. Deve-se afirmar o dom de Deus, mas sem desvalorizar a dignidade inerente a toda vida humana.
A defesa e a proteção da vida humana constituem um objetivo que os povos e culturas conceberam e realizaram de modos diferentes na história. A teologia moral cristã também teve sua própria percepção desse valor e criou sua própria normativa. A moral cristã educa a consciência cristã e humana em prol do respeito pela vida. A moral não responde tudo, mas oferece coordenadas para orientar o cristão.
A insistência na defesa e na salvaguarda da vida não deve obscurecer o exemplo de Cristo, que deus sua vida pelos homens; assim, é necessário como toda força a dimensão da vida como entrega.

Reprodução Assistida, Aborto e Transplante de órgãos
A reprodução medicamente assistida consiste essencialmente em : inseminação artificial, fecundação in vitro que é a fertilização de um óvulo fora do útero da mãe. Usa-se as mães de aluguel. A vida humana pode ser feita em outro lugar, não mais dentro, mas fora do corpo humano.
A Igreja é contra porque todo ser humano deve ser acolhido sempre como um dom, como uma benção de Deus. A reprodução assistida é ato contrário a natureza, portanto, seria imoral do ponto de vista da Igreja.
A bioética chama a atenção para que se tenha cuidado com estes métodos de reprodução, pois a vida pode se tornar um instrumento nas mãos dos cientistas, além disso, se pode favorecer a reprodução independente, somente com pai ou mãe. Ela pode, por outro lado, ser uma alternativa a casais heterossexuais que tem dificuldade em ter filhos. Elas só devem serem utilizadas quando não houver outras possibilidades.
O aborto, consiste em retirar um feto já fecundado do útero da mãe, a moral católica afirma que a vida começa na fecundação. Portanto, esse gesto é um crime contra a vida. A Igreja é radicalmente contra, nada justifica este ato contra uma vida indefesa. Nos tempos hodiernos são seis as motivações para o aborto: 1º Relações difíceis com o cônjuge ou companheiro; 2º Despreparo para a maternidade por partes de mulheres jovens; 3º Sentimento de cansaço em mulheres de idade mais avançada; 4º Necessidade de continuar os estudos; 5º Exigências de trabalho; 6º Temores dos mais diversos tipos em relação à gravidez.
Com o avanço das pesquisas relacionadas aos transplantes, aumentaram-se os problemas a eles relacionados. O transplante se justifica a partir da sua finalidade terapêutica de retirar órgãos de um cadáver para que outras pessoas possam viver. Mas com a falta de órgãos se gerou um mercado, onde pessoas ainda vivas são consideradas mortas, e seus órgãos, são transplantados para outras pessoas. Isso às vezes acontece sem maiores esclarecimentos a família dos doadores. A bioética afirma a necessidade do desenvolvimento das pesquisas com órgãos artificias, para que os problemas relacionados aos transplantes seja solucionados e que as vidas humanas sejam poupadas. Também afirma a necessidade de leis rigorosas a respeito do transplante de órgãos.

Eutanásia, Pena de Morte e Distanásia
Eutanásia: é o ato deliberado de provocar a morte num enfermo com ou sem sua solicitação. Pode ser classificada em eutanásia ativa quando a morte é diretamente infringida pelo uso de drogas mortíferas, geralmente intravenosas, e eutanásia passiva que ocorre quando se subtraem os meios de subsistência do paciente. Estes podem ser os recursos ordinários ou os recursos complexos com a parafernália tecnológica que se encontra em UTI: quimioterapia, antineoplástica, cirurgias. A Igreja atesta a eutanásia como um ato moralmente inadmissível. Sejam quais forem os motivos e os meios, a eutanásia direta consiste em pôr fim à vida de pessoas deficientes, doentes ou moribundas.
Pena de morte: Em qualquer consulta que fizermos à população brasileira sobre os principais problemas de nossa sociedade, com certeza a questão da violência e da criminalidade serão indicadas pelas maiorias das pessoas. No entanto, a pena de morte é ineficaz enquanto instrumento de controle da violência por não considerar as causas estruturais da violência. Os defensores da pena de morte trabalham com um diagnóstico superficial ou ideológico do problema da criminalidade. A pena de morte não tem demonstrado sua eficácia na intimidação ao crime. Este efeito dissuasivo é constantemente negado por inúmeros dados estatísticos. Pelo contrário, a ameaça da pena de morte pode se configurar num motivo a mais para o crime. Pois a testemunha de um delito grave se torna um inimigo feroz do delinqüente. A igreja chegou a aceitar e a justificar, no passado, a pena de morte. Hoje a igreja a rejeita, admitindo apenas em casos extremos.
Distanásia: é a tentativa de prolongar a vida de um paciente sem perspectivas de cura, utilizando, obstinadamente, meios extraordinários, sendo desproporcionais e ineficientes em relação à doença terminal, seja ela disfuncional, degenerativa ou tumoral. A utilidade desmedida de recursos extraordinários, em tais pacientes, nada faria do que prolongar desnecessariamente a agonia e, muitas vezes, o sofrimento. A distanásia também é considerada imoral, pois não é próprio do ser humano prolongar a vida de um outro ser humano.

Manipulação Genética: Desafios, Riscos e Vantagens para o Ser Humano e a Sociedade.
Por manipulação genética entendemos todo o processo de descoberta e de mudança na estrutura genética. Este processo se desencadeou a partir de três seres vivos: um verme da terra, uma erva daninha e a levedura de cerveja. Hoje, mesmo depois de anunciada a leitura do genoma humano, a leitura do genoma de outros seres vivos encontram-se na fase de muitas pesquisas: quanto mais genoma forem desvendados, tanto mais se compreenderá o genoma humano, uma vez que os genomas das várias raças são muito parecidos. Exemplo de manipulação genética são os alimentos transgênicos, a fertilização in vitro, a clonagem, as pesquisas com células tronco e muitas outras pesquisas que envolvem o DNA.
O projeto Genoma humano é um marco na manipulação genética, ele descobriu a cadeia do DNA e possibilitou ao homem descobrir o mapeamento genético dos seres vivos. Esse mapeamento permite aos cientistas escolherem as características dos seres humanos. Eles também possibilitam que se descubra antes mesmo do nascimento a possibilidade de doenças que venham ser desenvolvidas no futuro e que podem ser curadas com a troca do gene doente por um sadio.
Os riscos relacionados com a manipulação genética está no fato de se criar uma raça pura (arianismo), pessoas e alimentos modificados de tal forma que os cientistas se tornam deuses, brincam de criar da forma que bem entendem.
Existem muitas vantagens terapêuticas, com o desenvolvimento da manipulação genética. Estas podem garantir ao ser humano um vida mais digna, com saúde. Mas pena, que este desenvolvimento não atinge a toda sociedade, somente uma parte da sociedade é favorecida com a manipulação genética. Portanto, a maioria das pessoas fica excluída dos benefícios que a manipulação genética pode trazer, portanto a manipulação genética deve ser bem analisada para poder receber um parecer positivo ou negativo da bioética, levando em conta os princípio da bioética: a) autonomia, b) beneficência, c) maleficência, d) justiça.

Meio ambiente.
Buracos na camada de ozônio, aumento gradativo da temperatura, degelo das calotas polares, mutações climáticas, desertificação de imensas regiões, desaparecimento de espécies vegetais e animais são alguns dos problemas que ameaçam o ecossistema Terra.
Os problemas ecológicos não dependem de uma simples solução técnica, pedem uma resposta ética, requerem uma mudança de paradigma na vida pessoal, na convivência social, na produção de bens de consumo e principalmente, no relacionamento com a natureza. O debate ecológico expõe questões fundamentais para a ética, surgindo enfoques antropocêntricos ou biocêntricos nesta discussão ética. Na primeira visão, o ser humano detém um protagonismo no mundo, buscam a solução para os problemas ambientais na perspectiva do papel central do ser humano em relação à natureza, acentua, portanto a ética. Os biocêntricos defendem que o ser humano é apenas um elemento a mais no ecossistema da natureza, um elo entre muitos na cadeia de reprodução da vida. Por isso, o protagonismo pertence à vida e a crise ecológica precisa ser equacionada numa perspectiva biocêntrica, acentua portanto, a ecologia ao expressar sua proposta de ética ecológica.
Ha uma nítida separação entre ciências naturais e humanas, entre matéria e espírito, entre ciência e fé, entre economia e ética, entre indivíduo e sociedade, dificultando uma reação crítica. Essa separação corresponde ao processo de especialização e positivação do conhecimento científico. Em contrapartida, a fim de buscar um liame mais coeso entre a ciência e o desenvolvimento biotecnológico, sem provocar reações desastrosas, destaca-se a bioética, propondo uma visão integral da realidade natural e social. Deste modo, estamos diante da emergência de um novo paradigma de percepção e compreensão da realidade, inspirado pela ecologia que pretende superar a visão limitada e estreita da racionalidade instrumental moderna para, dessa maneira, fazer frente aos desafios ambientais.
Importante considerar, nesse sentido, a influência que a Bioética pode vir a ter nos instrumentos e nos processos que embasam as estratégias do mundo atual por meio das chamadas tecnologias e, mais ainda, nas biotecnologias, técnicas avançadas que utilizam seres vivos como instrumentos para mudar o mundo. Assim, para poder prever as conseqüências do uso dessas biotecnologias e ter condições e evitar seus efeitos negativos é preciso conhecer muito bem as regras da vida, atentando em especial para o que pode acontecer com os seres humanos, seja do ponto de vista individual, seja no que diz respeito às relações sociais. Daí a necessidade de muita precaução.


[1] Como se trata de geração de um ser, mas sem a fecundação do óvulo feita por um espermatozóide, e sobretudo porque tanto o elemento gerador quanto seu resultado são exclusivamente femininos, este tipo de reprodução é também denominado reprodução “virginal”. Trata-se de uma reprodução não somente assexuada, como no caso da clonagem, mas também exclusivamente feminina.
[2] DNA pode ser definido como ácido desoxirribonucléico (DNA) e ácido ribonucléico (RNA), ou seja, material genético que contém informações determinantes dos caracteres hereditários transmissíveis é descendência. Definição dada na Lei de Biossegurança, Lei n. 8.974, de 5 de janeiro de 1995, Art. III, 2.